quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Opinião do Estadão: A tirania das liminares no Supremo

 


A tirania das liminares no Supremo

Decisões monocráticas como a de Dino deveriam ser exceções, mas se tornaram regra. Quando um só ministro fabrica regras de alto impacto, sem debate colegiado, corrói a legitimidade do STF

Lá se vão três dias desde que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino manipulou uma decisão sobre os desastres de Mariana e Brumadinho (MG) para tentar blindar seu colega Alexandre de Moraes dos efeitos de sanções econômicas impostas pelos EUA, precipitando o pânico no sistema financeiro. Mais uma vez, um único magistrado fabricou regras de alto impacto político e econômico, sem debate colegiado, deixando a sociedade e os agentes públicos num limbo jurisdicional. Não se trata de episódio isolado, mas de um vício sistêmico que corrói a legitimidade da Corte: o monocratismo e o abastardamento da colegialidade.

O Supremo tornou rotineiro o que deveria ser absolutamente excepcional. Em 2023, nada menos que 83% de suas decisões foram individuais. Isso prostitui a lógica de um tribunal constitucional, cuja autoridade se funda na pluralidade de vozes e na força persuasiva de deliberações colegiadas. Quando um togado decide sozinho sobre temas que envolvem bilhões de reais, a elegibilidade de candidatos ou a liberdade de ex-presidentes, não há democracia nem segurança jurídica que resistam.

Exemplos são abundantes. O inquérito das fake news, conduzido por Moraes, concentrou em suas mãos poderes de investigação, acusação e julgamento, atropelando garantias processuais e alimentando recriminações de arbitrariedade. Em 2014, Luiz Fux concedeu, por liminar, auxílio-moradia a todos os juízes e procuradores, e só a revogou em 2018, após um acordo de aumento salarial – um caso claro de chantagem corporativa. Há anos Dias Toffoli vem anulando condenações da Lava Jato, em choque com decisões colegiadas anteriores e em benefício de criminosos confessos. Cada uma dessas decisões simboliza o desvio: de guardiões da Constituição, ministros se convertem em protagonistas dotados de um poder pessoal sem contrapesos.

A previsibilidade jurídica – condição para investimentos, contratos e confiança institucional – evapora quando um só ministro pode, por anos, suspender leis ou decretos sem prazo de revisão. Pior: quando finalmente chegam ao plenário, tais decisões quase sempre são confirmadas, não pela força dos argumentos, mas pelo constrangimento de reverter efeitos já consolidados. Em 2023, Ricardo Lewandowski suspendeu trechos da Lei das Estatais, abrindo caminho para nomeações políticas em empresas públicas pelo governo (do qual hoje é ministro). Em uma decisão teratológica, o colegiado reabilitou meses depois os dispositivos, mas manteve as nomeações a pretexto, ora vejam, da “segurança jurídica”. Assim, questões de magnitude nacional acabam, na prática, decididas por um único indivíduo.

Alexandre de Moraes anda se jactando de que não perdeu nenhum dos mais de 700 recursos contra suas ordens nos inquéritos e julgamentos das tramas golpistas. Mas isso soa menos como demonstração de autoridade e mais como sintoma de perversão estrutural. Se um tribunal jamais corrige decisões individuais que se prolongam no tempo, é porque a colegialidade foi esvaziada e substituída por uma homologação automática.

Decisões monocráticas deveriam restringir-se a hipóteses de urgência extrema, imediatamente submetidas ao plenário. Não se trata de enfraquecer a Corte, mas de fortalecê-la. Sua autoridade deriva do colegiado, não da vontade individual de cada ministro. É no debate entre 11 magistrados, e não na vontade de um só, que se forja a legitimidade democrática de suas sentenças.

Persistir nessa rota é arriscar a credibilidade do tribunal. Pesquisas registram a queda vertiginosa da confiança popular, e não por sua defesa do Estado de Direito, mas pelos abusos cometidos a pretexto dela. Ao insistir no monocratismo, o STF torna-se alvo fácil – e frequentemente legítimo – para políticos que o acusam de ativismo e autoritarismo.

A democracia brasileira não precisa de vigilantes iluminados, mas de juízes que cumpram a lei com modéstia institucional. O Supremo não pode continuar a ser, ao mesmo tempo, tribunal e palco de performances pessoais. Se não recuperar a centralidade da colegialidade, arrisca-se a perder aquilo que sem o qual nenhum Poder republicano sobrevive: o respeito e a confiança da sociedade.

Opinião do Estadão

 

 

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