A
tirania das liminares no Supremo
Decisões monocráticas como a de Dino deveriam ser
exceções, mas se tornaram regra. Quando um só ministro fabrica regras de alto
impacto, sem debate colegiado, corrói a legitimidade do STF
Lá se vão três dias desde que o ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) Flávio Dino manipulou uma decisão sobre os desastres de
Mariana e Brumadinho (MG) para tentar blindar seu colega Alexandre de Moraes
dos efeitos de sanções econômicas impostas pelos EUA, precipitando o pânico no
sistema financeiro. Mais uma vez, um único magistrado fabricou regras de alto
impacto político e econômico, sem debate colegiado, deixando a sociedade e os
agentes públicos num limbo jurisdicional. Não se trata de episódio isolado, mas
de um vício sistêmico que corrói a legitimidade da Corte: o monocratismo e o
abastardamento da colegialidade.
O Supremo tornou rotineiro o que deveria ser
absolutamente excepcional. Em 2023, nada menos que 83% de suas decisões foram
individuais. Isso prostitui a lógica de um tribunal constitucional, cuja
autoridade se funda na pluralidade de vozes e na força persuasiva de
deliberações colegiadas. Quando um togado decide sozinho sobre temas que
envolvem bilhões de reais, a elegibilidade de candidatos ou a liberdade de
ex-presidentes, não há democracia nem segurança jurídica que resistam.
Exemplos são abundantes. O inquérito das fake news,
conduzido por Moraes, concentrou em suas mãos poderes de investigação, acusação
e julgamento, atropelando garantias processuais e alimentando recriminações de
arbitrariedade. Em 2014, Luiz Fux concedeu, por liminar, auxílio-moradia a
todos os juízes e procuradores, e só a revogou em 2018, após um acordo de
aumento salarial – um caso claro de chantagem corporativa. Há anos Dias Toffoli
vem anulando condenações da Lava Jato, em choque com decisões colegiadas
anteriores e em benefício de criminosos confessos. Cada uma dessas decisões
simboliza o desvio: de guardiões da Constituição, ministros se convertem em
protagonistas dotados de um poder pessoal sem contrapesos.
A previsibilidade jurídica – condição para
investimentos, contratos e confiança institucional – evapora quando um só
ministro pode, por anos, suspender leis ou decretos sem prazo de revisão. Pior:
quando finalmente chegam ao plenário, tais decisões quase sempre são
confirmadas, não pela força dos argumentos, mas pelo constrangimento de
reverter efeitos já consolidados. Em 2023, Ricardo Lewandowski suspendeu
trechos da Lei das Estatais, abrindo caminho para nomeações políticas em empresas
públicas pelo governo (do qual hoje é ministro). Em uma decisão teratológica, o
colegiado reabilitou meses depois os dispositivos, mas manteve as nomeações a
pretexto, ora vejam, da “segurança jurídica”. Assim, questões de magnitude
nacional acabam, na prática, decididas por um único indivíduo.
Alexandre de Moraes anda se jactando de que não
perdeu nenhum dos mais de 700 recursos contra suas ordens nos inquéritos e
julgamentos das tramas golpistas. Mas isso soa menos como demonstração de
autoridade e mais como sintoma de perversão estrutural. Se um tribunal jamais
corrige decisões individuais que se prolongam no tempo, é porque a
colegialidade foi esvaziada e substituída por uma homologação automática.
Decisões monocráticas deveriam restringir-se a
hipóteses de urgência extrema, imediatamente submetidas ao plenário. Não se
trata de enfraquecer a Corte, mas de fortalecê-la. Sua autoridade deriva do
colegiado, não da vontade individual de cada ministro. É no debate entre 11
magistrados, e não na vontade de um só, que se forja a legitimidade democrática
de suas sentenças.
Persistir nessa rota é arriscar a credibilidade do
tribunal. Pesquisas registram a queda vertiginosa da confiança popular, e não
por sua defesa do Estado de Direito, mas pelos abusos cometidos a pretexto
dela. Ao insistir no monocratismo, o STF torna-se alvo fácil – e frequentemente
legítimo – para políticos que o acusam de ativismo e autoritarismo.
A democracia brasileira não precisa de vigilantes
iluminados, mas de juízes que cumpram a lei com modéstia institucional. O
Supremo não pode continuar a ser, ao mesmo tempo, tribunal e palco de
performances pessoais. Se não recuperar a centralidade da colegialidade,
arrisca-se a perder aquilo que sem o qual nenhum Poder republicano sobrevive: o
respeito e a confiança da sociedade.
Opinião do Estadão
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