Ananda Miranda
Repórter
Vídeos de crianças com maquiagem carregada, roupas justas
e coreografias sensuais estão cada vez mais presentes nas redes sociais. A
combinação de algoritmos, exposição e falta de controle tem empurrado crianças
para um universo perigoso e distorcido do que seria uma infância saudável. É a
chamada “adultização infantil”, um fenômeno que especialistas associam a riscos
psicológicos, emocionais e de segurança e acendem um alerta: as crianças estão
tendo suas infâncias roubadas.
O vídeo de denúncia do youtuber Felca contra o
influenciador Hylato Santos, acusado de explorar menores nas redes sociais,
reacendeu o debate. Pais e responsáveis precisam lidar com um cenário de riscos
crescentes — e muitas vezes invisíveis — para a infância. Hylato foi preso na
manhã desta sexta-feira (15), investigado por crimes como tráfico humano e
exploração sexual infantil.
Crianças estão deixando os brinquedos de lado para
aprender práticas que não condizem com sua idade — desde quais filtros
“valorizam” o rosto até os passos certos de uma coreografia que garanta
curtidas. Segundo especialistas, os sinais de alerta da adultização devem ser
observados.
“Os sinais aparecem quando há presença de linguajar
que não é da idade dela. Há roupas, maquiagens, danças sexualizadas, um
contexto erótico, uma exposição — seja nas redes sociais ou também em festas
com músicas cujo teor da letra é erótico, ou seja, não apropriado para a idade
daquela criança”, explica a psicóloga Débora Paiva, especialista em atendimento
de crianças e adolescentes.
Um levantamento do Instituto Locomotiva e da empresa
Unico revelou que 47% das crianças e adolescentes com redes sociais não
controlam seus seguidores, interagindo com desconhecidos. Ao menos 1 em cada 3
perfis de crianças e adolescentes entre 7 e 17 anos são totalmente abertos,
tornando-as alvos fáceis para criminosos.
A prática da adultização passou a ser explorada
comercialmente, segundo a presidente da Comissão de Direito da Infância da
OAB/RN, Sâmoa Martins. “Os próprios pais têm encontrado nas redes sociais uma
forma de captação de recursos”, criticou a advogada.
Martins também alerta para as consequências legais:
“Submeter criança ou adolescente a vexame ou a constrangimento leva a uma pena
de detenção de seis meses a dois anos. Publicação ou compartilhamento de
imagens com conotação sexual ou sensual envolvendo criança ou adolescente tem
pena de reclusão de quatro a oito anos”.
Ela também aponta a responsabilidade das
plataformas: “As plataformas podem ser penalizadas até porque elas estão
compartilhando conteúdo. Porém, a gente ainda não tem uma legislação avançada
que consiga demonstrar que a plataforma foi negligente”.
A presidente reforça que o ECA garante direitos
fundamentais, como lazer, brincadeira, proteção e segurança. “A gente, como
cidadão, pais, o Estado, tem que garantir à criança o direito à dignidade, ao
respeito, à integridade física”, disse.
Impacto psicológico pode durar a vida
inteira
De acordo com a psicóloga Débora Paiva, a exposição
precoce afeta diretamente a formação da autoestima, cognição e estrutura
emocional das crianças. “Se essa infância não tiver permissão para a criança
conhecer o mundo de uma forma lúdica e saudável, ela pode vir a ter problemas
na própria percepção de si mesma, na percepção dos outros, dos adultos”,
alerta.
Ela completa: “Pode desenvolver crenças desfavoráveis,
por exemplo, de não poder confiar nas relações, de se sentir explorada, de
sentir que as pessoas vão rir dela o tempo todo, ou que precisa estar ali para
agradar, cumprir ou suprir a expectativa desses adultos que a colocam no
centro, no foco”.
Casos de abuso dentro da própria família podem
deixar marcas ainda mais profundas e duradouras. “Quando a agressão vem de quem
a criança esperava segurança, de quem ela esperava proteção. Então é uma
fissura, na sua própria história de vida”, afirma.
“A gente pode esperar quadros de adoecimento, de
questionamento sobre defectividade: ‘Será que o defeito está em mim? Por que
fizeram isso comigo?’ Existem muitos adultos em sofrimento hoje, refletindo
sobre suas próprias infâncias.”
Segundo a psicóloga, a infância precisa ser um
espaço de acolhimento e cuidado. “Deixar a criança ser criança significa
permitir que ela seja cuidada, amada, que brinque, receba atenção e seja
protegida”. E adverte: “A adultização entrou na nossa sociedade de forma muito
sutil, quase natural, principalmente pelas redes sociais. A gente acaba achando
que isso é normal, mas não é”.
Em Natal, os casos de exposição indevida e possíveis
abusos digitais são acompanhados pela Delegacia Especializada na Proteção da
Criança e do Adolescente. A delegada Marjorie Saunders Lopes destaca sinais
importantes que pais devem observar: “Uso excessivo da internet em horários
incomuns, mudança repentina de comportamento ou humor sem outra causa aparente,
isolamento social, medo de entregar o celular ou o computador, recebimento de
presentes suspeitos”.
Ela explica o conceito de “janelas de risco”,
momentos de vulnerabilidade usados por criminosos para se aproximar das
vítimas. “O predador inicia com interações e conversas aparentemente
inofensivas, vai criando vínculos, se aproximando, pode envolver até o envio de
presentes, até aquela situação se transformar em um cenário de manipulação, de
chantagem emocional, sexual e de abuso, efetivamente.”
A delegada também alerta para o uso de tecnologias
como o deepfake, que permite a manipulação de imagens postadas por familiares
com intenções inocentes: “Postagens que inicialmente um familiar faz, com a
foto de uma criança em contexto de praia, por exemplo, podem refletir um olhar
inocente, de carinho, de amor, do responsável pela publicação. Mas nesse mesmo
link digital existem esses predadores, abusadores, pedófilos que estão se
abordando por essas vulnerabilidades.”
Ela alerta que os pais devem estar atentos e
presentes. “A violência não está somente na rua, ela também está no meio
digital de forma cada vez mais crescente. Onde há criança e adolescente
sozinho, sem vigilância, pode haver também abusadores disfarçados, só
aguardando essas oportunidades.”
A pedagoga Glória Medeiros controla o uso da
tecnologia pelo seu filho de 8 anos: “Não dou telas pra ele. Criança não foi
feita pra isso”, afirma. Para ela, o uso de redes sociais por crianças “tira a
infância, atrapalha a imaginação e as relações sociais”. Para ela, o perigo vai
além: “A criança não tem maturidade emocional para saber o que é bom ou ruim.
Instagram pra criança é extremamente perigoso”.
No lugar da tecnologia, o menino brinca de Lego, vai
a parques e ama ler. “Ele não tem celular, não mexe em nada. E eu tenho
certeza: ele tem uma infância melhor assim”, conta a pedagoga ao lado do filho,
que se concentra em um livro de 700 páginas.
Algoritmo não tem senso de moralidade
A exposição de crianças nas redes sociais representa
uma ameaça crescente, especialmente diante da atuação de predadores digitais
que se aproveitam de imagens aparentemente inocentes. Para o perito em
computação forense Clézio Lima, o perigo da exposição excessiva pode fornecer
informações estratégicas para outros tipos de crimes. “A partir das imagens,
você pode dar conhecimento para aquele determinado predador onde é que a
criança estuda, onde é que ela mora”. Esses dados, uma vez juntados de forma
estratégica, podem também ser usados para outro tipo de golpe, como, por
exemplo, uma extorsão.
O especialista pondera que os algoritmos não têm
discernimento moral: “O algoritmo, ele não é, digamos, culpado pela exposição
excessiva da internet. O algoritmo não vai fazer esse discernimento, quem é
quem”. O mecanismo, segundo ele, apenas entrega o tipo de conteúdo com base no
interesse do usuário: “Se esse tipo de conteúdo, nele, está incluso fotos de
crianças e adolescentes, ele vai começar a entregar”.
Para ele, o avanço da inteligência artificial (IA)
nas plataformas não acompanha técnicas de segurança que protejam as crianças.
“Como é que a gente vive hoje com vários serviços de inteligência artificial
avançados, mas essa mesma inteligência artificial não é utilizada para bloquear
ou cortar esse tipo de fluxo?”
Segundo ele, a tecnologia já tem capacidade de
identificar e bloquear esse tipo de conteúdo. “O WhatsApp consegue identificar
hashtags, que são alertadas quando elas são acionadas”, disse, apontando que
“muito possivelmente seja uma questão muito mais comercial”, pois o tráfego
gera visualizações e, consequentemente, lucro.
De acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil, a
rede social mais utilizada por crianças de 9 a 12 anos é o TikTok. Já entre
adolescentes de 13 a 17 anos, o Instagram lidera. No Brasil, a idade mínima
permitida para criar uma conta no TikTok é de 12 anos, enquanto no Instagram é
de 16 anos.
A pesquisa também revelou que o YouTube é a
plataforma mais usada por crianças de 9 a 12 anos (88%). O primeiro acesso à
internet também vem acontecendo mais cedo: 23% dos jovens de 9 a 17 anos em
2024 disseram ter entrado online antes dos 6 anos, contra 11% em 2015.
O perito destaca que, embora importante, o controle
parental não é garantia de segurança completa. “Não existe hoje, na segurança
cibernética, uma bala de prata onde eu possa criar um campo de força ao redor
do meu filho. O que existe são estratégias”, explica.
Entre essas estratégias, ele destaca três
principais: “Obedecer à classificação etária. Depois, se for imprescindível a
utilização de uma rede social, que ela seja privada e que ela tenha o controle
de parentalidade também ativo e uma comunicação aberta entre pais e filhos.”
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