domingo, 17 de agosto de 2025

Adultização expõe crianças a crimes, traumas e exploração nas redes sociais

 


Ananda Miranda
Repórter

Vídeos de crianças com maquiagem carregada, roupas justas e coreografias sensuais estão cada vez mais presentes nas redes sociais. A combinação de algoritmos, exposição e falta de controle tem empurrado crianças para um universo perigoso e distorcido do que seria uma infância saudável. É a chamada “adultização infantil”, um fenômeno que especialistas associam a riscos psicológicos, emocionais e de segurança e acendem um alerta: as crianças estão tendo suas infâncias roubadas.

O vídeo de denúncia do youtuber Felca contra o influenciador Hylato Santos, acusado de explorar menores nas redes sociais, reacendeu o debate. Pais e responsáveis precisam lidar com um cenário de riscos crescentes — e muitas vezes invisíveis — para a infância. Hylato foi preso na manhã desta sexta-feira (15), investigado por crimes como tráfico humano e exploração sexual infantil.

Crianças estão deixando os brinquedos de lado para aprender práticas que não condizem com sua idade — desde quais filtros “valorizam” o rosto até os passos certos de uma coreografia que garanta curtidas. Segundo especialistas, os sinais de alerta da adultização devem ser observados.

“Os sinais aparecem quando há presença de linguajar que não é da idade dela. Há roupas, maquiagens, danças sexualizadas, um contexto erótico, uma exposição — seja nas redes sociais ou também em festas com músicas cujo teor da letra é erótico, ou seja, não apropriado para a idade daquela criança”, explica a psicóloga Débora Paiva, especialista em atendimento de crianças e adolescentes.

Um levantamento do Instituto Locomotiva e da empresa Unico revelou que 47% das crianças e adolescentes com redes sociais não controlam seus seguidores, interagindo com desconhecidos. Ao menos 1 em cada 3 perfis de crianças e adolescentes entre 7 e 17 anos são totalmente abertos, tornando-as alvos fáceis para criminosos.

A prática da adultização passou a ser explorada comercialmente, segundo a presidente da Comissão de Direito da Infância da OAB/RN, Sâmoa Martins. “Os próprios pais têm encontrado nas redes sociais uma forma de captação de recursos”, criticou a advogada.

Martins também alerta para as consequências legais: “Submeter criança ou adolescente a vexame ou a constrangimento leva a uma pena de detenção de seis meses a dois anos. Publicação ou compartilhamento de imagens com conotação sexual ou sensual envolvendo criança ou adolescente tem pena de reclusão de quatro a oito anos”.

Ela também aponta a responsabilidade das plataformas: “As plataformas podem ser penalizadas até porque elas estão compartilhando conteúdo. Porém, a gente ainda não tem uma legislação avançada que consiga demonstrar que a plataforma foi negligente”.

A presidente reforça que o ECA garante direitos fundamentais, como lazer, brincadeira, proteção e segurança. “A gente, como cidadão, pais, o Estado, tem que garantir à criança o direito à dignidade, ao respeito, à integridade física”, disse.

Impacto psicológico pode durar a vida inteira

De acordo com a psicóloga Débora Paiva, a exposição precoce afeta diretamente a formação da autoestima, cognição e estrutura emocional das crianças. “Se essa infância não tiver permissão para a criança conhecer o mundo de uma forma lúdica e saudável, ela pode vir a ter problemas na própria percepção de si mesma, na percepção dos outros, dos adultos”, alerta.

Ela completa: “Pode desenvolver crenças desfavoráveis, por exemplo, de não poder confiar nas relações, de se sentir explorada, de sentir que as pessoas vão rir dela o tempo todo, ou que precisa estar ali para agradar, cumprir ou suprir a expectativa desses adultos que a colocam no centro, no foco”.

Casos de abuso dentro da própria família podem deixar marcas ainda mais profundas e duradouras. “Quando a agressão vem de quem a criança esperava segurança, de quem ela esperava proteção. Então é uma fissura, na sua própria história de vida”, afirma.

“A gente pode esperar quadros de adoecimento, de questionamento sobre defectividade: ‘Será que o defeito está em mim? Por que fizeram isso comigo?’ Existem muitos adultos em sofrimento hoje, refletindo sobre suas próprias infâncias.”

Segundo a psicóloga, a infância precisa ser um espaço de acolhimento e cuidado. “Deixar a criança ser criança significa permitir que ela seja cuidada, amada, que brinque, receba atenção e seja protegida”. E adverte: “A adultização entrou na nossa sociedade de forma muito sutil, quase natural, principalmente pelas redes sociais. A gente acaba achando que isso é normal, mas não é”.

Em Natal, os casos de exposição indevida e possíveis abusos digitais são acompanhados pela Delegacia Especializada na Proteção da Criança e do Adolescente. A delegada Marjorie Saunders Lopes destaca sinais importantes que pais devem observar: “Uso excessivo da internet em horários incomuns, mudança repentina de comportamento ou humor sem outra causa aparente, isolamento social, medo de entregar o celular ou o computador, recebimento de presentes suspeitos”.

Ela explica o conceito de “janelas de risco”, momentos de vulnerabilidade usados por criminosos para se aproximar das vítimas. “O predador inicia com interações e conversas aparentemente inofensivas, vai criando vínculos, se aproximando, pode envolver até o envio de presentes, até aquela situação se transformar em um cenário de manipulação, de chantagem emocional, sexual e de abuso, efetivamente.”

A delegada também alerta para o uso de tecnologias como o deepfake, que permite a manipulação de imagens postadas por familiares com intenções inocentes: “Postagens que inicialmente um familiar faz, com a foto de uma criança em contexto de praia, por exemplo, podem refletir um olhar inocente, de carinho, de amor, do responsável pela publicação. Mas nesse mesmo link digital existem esses predadores, abusadores, pedófilos que estão se abordando por essas vulnerabilidades.”

Ela alerta que os pais devem estar atentos e presentes. “A violência não está somente na rua, ela também está no meio digital de forma cada vez mais crescente. Onde há criança e adolescente sozinho, sem vigilância, pode haver também abusadores disfarçados, só aguardando essas oportunidades.”

A pedagoga Glória Medeiros controla o uso da tecnologia pelo seu filho de 8 anos: “Não dou telas pra ele. Criança não foi feita pra isso”, afirma. Para ela, o uso de redes sociais por crianças “tira a infância, atrapalha a imaginação e as relações sociais”. Para ela, o perigo vai além: “A criança não tem maturidade emocional para saber o que é bom ou ruim. Instagram pra criança é extremamente perigoso”.

No lugar da tecnologia, o menino brinca de Lego, vai a parques e ama ler. “Ele não tem celular, não mexe em nada. E eu tenho certeza: ele tem uma infância melhor assim”, conta a pedagoga ao lado do filho, que se concentra em um livro de 700 páginas.

Algoritmo não tem senso de moralidade

A exposição de crianças nas redes sociais representa uma ameaça crescente, especialmente diante da atuação de predadores digitais que se aproveitam de imagens aparentemente inocentes. Para o perito em computação forense Clézio Lima, o perigo da exposição excessiva pode fornecer informações estratégicas para outros tipos de crimes. “A partir das imagens, você pode dar conhecimento para aquele determinado predador onde é que a criança estuda, onde é que ela mora”. Esses dados, uma vez juntados de forma estratégica, podem também ser usados para outro tipo de golpe, como, por exemplo, uma extorsão.

O especialista pondera que os algoritmos não têm discernimento moral: “O algoritmo, ele não é, digamos, culpado pela exposição excessiva da internet. O algoritmo não vai fazer esse discernimento, quem é quem”. O mecanismo, segundo ele, apenas entrega o tipo de conteúdo com base no interesse do usuário: “Se esse tipo de conteúdo, nele, está incluso fotos de crianças e adolescentes, ele vai começar a entregar”.

Para ele, o avanço da inteligência artificial (IA) nas plataformas não acompanha técnicas de segurança que protejam as crianças. “Como é que a gente vive hoje com vários serviços de inteligência artificial avançados, mas essa mesma inteligência artificial não é utilizada para bloquear ou cortar esse tipo de fluxo?”

Segundo ele, a tecnologia já tem capacidade de identificar e bloquear esse tipo de conteúdo. “O WhatsApp consegue identificar hashtags, que são alertadas quando elas são acionadas”, disse, apontando que “muito possivelmente seja uma questão muito mais comercial”, pois o tráfego gera visualizações e, consequentemente, lucro.

De acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil, a rede social mais utilizada por crianças de 9 a 12 anos é o TikTok. Já entre adolescentes de 13 a 17 anos, o Instagram lidera. No Brasil, a idade mínima permitida para criar uma conta no TikTok é de 12 anos, enquanto no Instagram é de 16 anos.

A pesquisa também revelou que o YouTube é a plataforma mais usada por crianças de 9 a 12 anos (88%). O primeiro acesso à internet também vem acontecendo mais cedo: 23% dos jovens de 9 a 17 anos em 2024 disseram ter entrado online antes dos 6 anos, contra 11% em 2015.

O perito destaca que, embora importante, o controle parental não é garantia de segurança completa. “Não existe hoje, na segurança cibernética, uma bala de prata onde eu possa criar um campo de força ao redor do meu filho. O que existe são estratégias”, explica.

Entre essas estratégias, ele destaca três principais: “Obedecer à classificação etária. Depois, se for imprescindível a utilização de uma rede social, que ela seja privada e que ela tenha o controle de parentalidade também ativo e uma comunicação aberta entre pais e filhos.”

 

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