Isso não é justiça
Moraes condena uma cidadã que nem sequer deveria ter
sido julgada pelo STF a 14 anos de prisão por causa de uma pichação com batom,
num flagrante exagero que desmoraliza o Judiciário
Na tarde de ontem, o ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes votou para condenar a sra. Débora
Rodrigues dos Santos a 14 anos de prisão. A cabeleireira de Paulínia, cidade do
interior de São Paulo, não cometeu um crime de sangue. Tampouco aplicou um
grave golpe na praça ou desviou milhões de reais em recursos públicos, como
tantos que caminham livremente pelas ruas País afora. Armada com um batom, a ré
pichou, na estátua da Justiça em frente à sede da Corte durante os atos
golpistas no 8 de Janeiro, os dizeres “Perdeu, mané” – uma referência à infeliz
frase dita pelo presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, a um
bolsonarista que o admoestou em Nova York, em novembro de 2022. No mundo da
justiça e da sensatez, foi este, e apenas este, o seu crime.
Já para a Procuradoria-Geral da República
(PGR) e para o ministro Alexandre de Moraes, Débora dos Santos praticou cinco
delitos gravíssimos: tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de
Direito; tentativa de golpe de Estado; associação criminosa armada; dano
qualificado contra o patrimônio da União; e deterioração de patrimônio público
tombado. Nada menos. Como exatamente ela praticou cada um deles tendo se
comportado como se comportou naquele dia fatídico, parece não ter importância.
Presa preventivamente, por ordem de Moraes, desde 17 de março de 2023, a ré
agora está prestes a receber uma pena – caso a decisão do relator seja
confirmada por seus pares – que ultrapassa, e muito, as penas a que foram
condenados criminosos muito mais perigosos do que ela para a sociedade. Por si
só, isso abala ainda mais a já desgastada imagem do STF aos olhos de muitos
brasileiros de boa-fé que acompanham, atônitos, a forma como o STF tem
conduzido os julgamentos dos atos golpistas.
Não resta a menor dúvida de que, por ter
praticado atos tipificados como crimes pela legislação penal em vigor no País,
Débora dos Santos deveria mesmo receber uma sanção judicial após o transcurso
do devido processo legal – que, a rigor, deveria ter começado no foro indicado,
qual seja, a primeira instância, e não a última, o que impede que a uma cidadã
sem prerrogativa de foro seja plenamente assegurado o direito ao duplo grau de
jurisdição. Mas a qualquer pessoa minimamente sensata, imbuída de boa-fé e,
sobretudo, senso de justiça, uma pena tão draconiana como a imposta à ré pelo
ministro Alexandre de Moraes não passa nem sequer por razoável, que dirá por
justa. Lamentavelmente, e não apenas para o STF, mas para todo o País, senso de
justiça é o que faltou ao sr. Moraes no julgamento desse caso.
Não há virtude maior para um juiz do que o
senso de justiça. No julgamento de um caso concreto, o magistrado não se limita
– ou não deveria se limitar – à aplicação mecânica da lei. Julgar implica um
exame profundo das circunstâncias e das consequências da decisão a ser tomada,
a culminação de uma exegese equilibrada que não por acaso tem uma balança como
símbolo. Ao se debruçar sobre as provas trazidas aos autos e ouvir os
argumentos da acusação e da defesa, um juiz há de ter a habilidade de enxergar
além da letra da lei. Chega a ser constrangedor para este jornal ter de colocar
essas palavras no papel diante de um caso sendo julgado por nada menos do que a
mais alta instância judicial do País.
Malgrado não ser, como já foi dito, a sede
adequada para o julgamento de Débora dos Santos e tantos outros cidadãos
envolvidos no 8 de Janeiro que não têm foro especial por prerrogativa de
função, ainda há tempo para que o colegiado do STF corrija a flagrante
injustiça do ministro Alexandre de Moraes. Deveria ser ocioso dizer que a
aplicação da lei deve ser feita com equilíbrio, razoabilidade e sensatez. Nada
disso há no voto condenatório do sr. Moraes.
No caso concreto de Débora dos Santos, o STF
deve refletir profundamente sobre a real gravidade de sua conduta, da qual a ré
já se desculpou por escrito tanto à Corte como à Nação. A um tempo, o Supremo
não só preservará a função social da pena, como evitará uma sobrecarga punitiva
que mais parece um recado simbólico do que, de fato, um ato de justiça.
Opinião do Estadão
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