O Ministério Público Federal (MPF) apresentou denúncia contra o ex-secretário adjunto de Saúde de
Natal, Vinícius Capuxu de Medeiros, e o empresário Wender de Sá pelos crimes de
peculato qualificado, dispensa ilegal de licitação e fraude à execução de
contrato administrativo. Os dois direcionaram ilegalmente a contratação da
empresa Spectrum Medic Comércio e Serviços Ltda. (nome de fantasia Spectrum
Equipamentos Hospitalares) para o fornecimento de 20 respiradores pulmonares –
usados ou seminovos – destinados ao combate à pandemia da covid-19 na capital
potiguar, por R$ 2,1 milhões.
Os equipamentos, contudo, se mostraram praticamente
inservíveis, tendo mais tempo de fabricação e de uso do que a vida útil
(prevista para 10 anos). Alguns nunca funcionaram, muitos apresentavam
características suspeitas de serem clandestinos ou fruto de falsificação e,
mesmo assim, os preços pagos pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) estavam
muito acima dos praticados no mercado.
Além da denúncia, o MPF ingressou com uma ação por improbidade, na qual os dois são réus juntamente
com a Spectrum e a Vega Comércio e Serviços Eireli, também controlada por
Wender de Sá e que recebeu indiretamente parte dos valores pagos pelo contrato
(R$ 1,268 milhão). Ao todo, o prejuízo ao Sistema Único de Saúde foi estimado
em, pelo menos, R$ 1.433.340.
Direcionamento –
As duas ações do MPF apontam que a Spectrum havia sido escolhida por Vinícius
Capuxu antes mesmo de instaurado o procedimento de dispensa de licitação. A
proposta da empresa é de 11 de maio de 2020, enquanto a dispensa foi autorizada
somente três dias depois, pelo próprio secretário adjunto.
A Assessoria Jurídica da secretaria só se manifestou a
favor da dispensa no dia 19 daquele mês, destacando a necessidade de
complementar a estimativa de preços, recomendação que nunca foi cumprida. O
parecer foi acatado por Vinícius Capuxu em 21 de maio, porém um dia antes ele
já havia assinado o termo de dispensa.
Em nenhum momento se apresentou especificação técnica
detalhada dos produtos que a secretaria pretendia adquirir, impedindo a
participação de outras concorrentes. O projeto básico simplificado, aliás, foi
elaborado a partir da proposta apresentada pela própria Spectrum e com valores
estimados com base no preço oferecido por Wender de Sá (R$ 2,16 milhões).
Complementando todo o rol de irregularidades, as notas
fiscais foram emitidas em 27 de maio, um dia antes do contrato ser assinado.
Nesse mesmo 27 de maio Vinícius Capuxu se encontrou com Wender de Sá na sede da
Spectrum, no município de Aparecida de Goiânia (GO). Outra empresa do ramo
declarou, durante as investigações, que teria coberto qualquer oferta, mas não
teve acesso ao modelo e às especificações dos aparelhos, nem mesmo após um
pedido formal.
Falsificações –
Vários dos equipamentos eram mercadorias de origem clandestina e, inclusive,
com sinais concretos de falsificação. Seis possuíam números de série
adulterados, não tendo sido reconhecidos como autênticos nem pela suposta
fabricante: “o que constitui forte indicativo de que foram roubados, furtados
ou de qualquer outro modo desviados de seu destino regular”.
A Specturm forneceu ainda aparelhos de outras marcas
não mencionadas no procedimento de dispensa e nem no contrato. Duas delas
apontaram que os aparelhos vendidos à Prefeitura do Natal haviam sido
comercializado anteriormente para outros hospitais, não havendo “qualquer dado
que esclareça como tais produtos chegaram às mãos da Spectrum, o que leva a que
se questione a própria licitude de sua aquisição para revenda”.
Em 26 de junho de 2020, Vinícius Capuxu recebeu
mensagem eletrônica de uma das fabricantes, alertando que um dos ventiladores
pulmonares fornecidos pela Spectrum continha etiqueta não original, entre
outras irregularidades. O ex-secretário adjunto, contudo, autorizou o pagamento
dos equipamentos, sem tomar qualquer providência para analisar a denúncia da
fabricante.
Imprestáveis –
Os ventiladores eram extremamente antigos, com vida útil bastante limitada.
Segundo o MPF, constavam “bens que já haviam se tornado imprestáveis em
decorrência do longo tempo de uso e que foram remanufaturados, o que em momento
algum foi objeto de expressa menção na proposta da Spectrum”.
Cinco dos respiradores, encaminhados ao Hospital
Municipal de Natal, chegaram a ser devolvidos à SMS por serem inadequados para
o tratamento de pacientes com covid-19. A direção hospitalar relatou, entre
outros problemas nos equipamentos, a não aferição do estado da ventilação
mecânica, a impossibilidade de reposição de peças e que um deles já foi
recebido com a carcaça quebrada. No documento de devolução, a direção destacou:
“precisamos ter ventiladores mecânicos que não quebrem nem necessitem de
manutenção com frequência, pois podemos colocar os pacientes em risco de
morte”.
De acordo com a Controladoria-Geral da União (CGU),
praticamente todos tinham mais de dez anos de fabricação e uso, considerado o
limite de vida útil. Dois deles já haviam sido vendidos a um terceiro como
“bens em desuso, sem funcionamento regular”. Outro foi “desativado por
descontinuidade”, tendo sido entregue a depósito de materiais “obsoletos” da
Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais. A maioria passou a maior parte do
tempo sofrendo reparos, com dificuldade até mesmo em se conseguir as peças de
reposição.
Sobrepreço –
Enquanto cobrou da Prefeitura do Natal R$ 108 mil por cada respirador, a
Spectrum havia vendido aparelhos semelhantes, entre março e abril daquele ano,
por preços que variavam entre R$ 28 mil e R$ 60 mil. Notas fiscais de devolução
de dois dos equipamentos queixosamente defeituosos entregues à SMS indicavam o
valor de R$ 5 mil cada.
Na mesma época, a Secretaria Estadual de Saúde do RN
adquiriu respiradores, novos, por R$ 107 mil cada e registrou, no portal da
transparência, o pagamento de ventiladores também novos – e de especificações
técnicas superiores – por R$ 53 mil a unidade.
Para o MPF, “quem estava por trás de todo o
procedimento era de fato o então secretário adjunto”. É o que demonstram os
dados obtidos a partir das quebras de sigilo e, inclusive, um diálogo do
titular da SMS, George Antunes, logo após a operação: “O pior, o pior (…) é que
eu não queria comprar esse negócio, sabe? Foi aquele Secretário Adjunto que
ficou insistindo nesse negócio”.
Rebotalho –
A operação foi deflagrada em 1º de julho deste ano e as investigações contaram
com a quebra de sigilos fiscal, bancário e telefônico dos suspeitos, além de
interceptações telefônicas e do cumprimento de mandados de busca e apreensão,
somados a relatórios da CGU.
Os dois envolvidos poderão responder pelos crimes de
peculato qualificado (art. 312 do Código Penal) e dispensa ilegal de licitação
(art. 89 da Lei 8.666/1993, vigente na época dos fatos) e o empresário também
por fraude à execução de contrato administrativo (art. 96, incisos I, II e III,
da Lei n. 8.666/1993, vigente na época).
Na denúncia, protocolada sob o número
0808458-79.2021.4.05.8400, o MPF requer ainda o ressarcimento dos danos, a
perda de cargo, função pública ou mandato eletivo eventualmente exercidos pelos
réus, bem como a perda ou suspensão temporária dos direitos políticos.
Já a ação de improbidade (0808746-27.2021.4.05.8400)
pode resultar na condenação de ambos, bem como das empresas Spectrum e Vega, ao
ressarcimento do dano e à proibição de contratar com o poder público, ou mesmo
receber benefícios ou incentivos fiscais, entre outras sanções.
Para garantir o ressarcimento dos danos, o MPF pediu o
sequestro de bens dos denunciados, mas só foram localizados menos de R$ 6 mil
nas contas dos envolvidos. Um pedido complementar requer a indisponibilização
de veículos e imóveis para assegurar o valor necessário.
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