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sábado, 5 de abril de 2025

“Ladinho”: O mensageiro que se tornou a própria mensagem na enchente de 81

 


Ainda não era inverno, mas naqueles dias entre março e abril de 1981, as chuvas chegaram à região Trairi do Rio Grande do Norte de maneira forte e persistente, enchendo não somente os açudes e poços, mas também de esperança os agricultores que já plantavam a semente de uma futura colheita garantida com sucesso. Mas a alegria precoce dos moradores de duas cidades importantes, conhecidas por suas movimentadas feiras livres, veio, literalmente, água abaixo.

No primeiro dia de abril, o amanhecer mais uma vez não teve o sol como protagonista — o céu derramava sua força sobre Santa Cruz, distante 116 quilômetros de Natal, e Campo Redondo, 30 a mais da capital do Estado. Com o acúmulo das águas gerado por dias e dias de chuvas, o açude Mãe D’Água, em Campo Redondo, logo atingiu o ponto máximo de sua capacidade, e o risco de transbordamento era iminente. Logo, os moradores que viviam próximos ao açude informaram rapidamente as autoridades de que algo terrível estava para acontecer.

Se a barragem do açude de Campo Redondo não suportasse a força das águas, elas teriam um destino rápido e devastador, escoando pelo rio Trairi até o açude Santa Cruz. Os recursos de comunicação ainda eram precários — o único meio era o telefone instalado na antiga empresa de telefonia do Estado, a TELERN. Foi através desse dispositivo que a telefonista de Campo Redondo, Maria de Fátima, insistentemente tentou avisar a cidade vizinha sobre o que estava por vir. O detalhe é que, mesmo com a natureza dando sinais claros, ninguém acreditava na mensagem da funcionária da TELERN. Motivo? Era 1º de abril, popularmente conhecido como o Dia da Mentira.

O tempo não esperou! “O açude Mãe D’Água estourou.” A população ficou desesperada, e, em minutos, dezenas de casas foram destruídas e centenas de pessoas ficaram desabrigadas. Em menos de duas horas, Santa Cruz também foi atingida pela enxurrada, e mais destruição foi registrada. Em meio ao caos, surgiu uma figura que foi fundamental, assim como a telefonista: o mensageiro! Com as notícias se espalhando, logo familiares que viviam em Natal tomaram conhecimento, e o clima de angústia e desespero tomou conta de todos. Fátima recebia ligações de familiares das vítimas, querendo notícias dos seus parentes, e só havia uma forma de confirmar se essas pessoas estavam bem, desabrigadas ou mortas. Um jovem rapaz que trabalhava como mensageiro na TELERN, de posse de uma simples bicicleta, assumiu esse ofício de encarar a correnteza e cumprir o seu papel: saber como estavam aquelas famílias e voltar para o prédio da TELERN com boas e más notícias.

Geraldo Gomes da Silva era o nome do mensageiro, mas, em Campo Redondo, aquele bravo e corajoso jovem era conhecido como “Ladinho”. Segundo testemunhas daquele fatídico dia, o mensageiro percorreu a cidade dezenas de vezes, correndo o risco de ser arrastado ou engolido pelo verdadeiro rio caudaloso. Há quem diga, ainda hoje, que “Ladinho” chegou a levar a bicicleta nas costas para ir de um ponto a outro de Campo Redondo, onde era inviável trafegar. A noite chegou e, devido aos danos no sistema de energia elétrica da cidade, tudo ficou às escuras. O sistema de telefonia continuou funcionando porque um caminhoneiro emprestou a bateria do veículo para que os equipamentos continuassem ativos.

Mesmo na escuridão, o mensageiro continuou. Ele conhecia bem a cidade — as pequenas ruas, becos, ladeiras e caminhos. Em Natal, a chuva era de lágrimas de desespero. Lembro que minha mãe foi comigo até a casa da minha tia, onde estava também um tio, no bairro Alecrim. Todos mostravam uma aflição que nunca esquecerei. Foi uma madrugada de espera por notícias, até que as informações foram atualizadas: minha família estava bem, mas muita gente perdeu tudo nas duas cidades. Os órgãos do governo, na ocasião da tragédia, fizeram uma contagem triste e dolorosa. Mais de mil casas destruídas, centenas danificadas, três mil pessoas desabrigadas e seis mortes registradas pelo Corpo de Bombeiros. No dia 2 de abril, a chuva veio serena, junto com um silêncio quebrado apenas pelo choro de quem não sabia o que fazer nem para onde ir. “Ladinho” não dormiu — fez de tudo para, de alguma forma, amparar do seu jeito de mensageiro o povo desolado e agora sem endereço para ele enviar e saber das notícias.

O tempo passou, e as duas cidades se ergueram, recuperando suas identidades — tijolo a tijolo, telha por telha, de mão em mão. Muitos que testemunharam a enchente do Mãe D’Água de 81 agora navegam no mar da eternidade, mas a história, que completou neste ano de 2025, 44 anos, ainda vive na memória de quem ouviu contar. Das poucas vezes que tive o privilégio de falar sobre o assunto com aquele que ficou na lembrança de poucos, senti um misto de sentimentos: tristeza por ele não ter sido lembrado em ocasiões pertinentes à tragédia e orgulho por ter feito parte de uma história marcada também pelo heroísmo de tantos que ficaram ocultos — sem estátuas, medalhas e homenagens. No caso do meu tio Geraldo Gomes da Silva, o “Ladinho”, que morreu aos 70 anos na casa de uma das irmãs, minha mãe, em Natal, eu me senti na responsabilidade e obrigação de entender, refletir e compartilhar que, como também um mensageiro de notícias atuais, as nossas próprias enxurradas, desabrigos, desabamentos e angústias, o que de fato a vida quer é que deixemos de ser apenas o mensageiro corajoso para nos tornarmos a própria mensagem.

Por: O Equilibrista

 


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