Ainda não era inverno, mas naqueles dias entre março
e abril de 1981, as chuvas chegaram à região Trairi do Rio Grande do Norte de
maneira forte e persistente, enchendo não somente os açudes e poços, mas também
de esperança os agricultores que já plantavam a semente de uma futura colheita
garantida com sucesso. Mas a alegria precoce dos moradores de duas cidades
importantes, conhecidas por suas movimentadas feiras livres, veio,
literalmente, água abaixo.
No primeiro dia de abril, o amanhecer mais uma vez
não teve o sol como protagonista — o céu derramava sua força sobre Santa Cruz,
distante 116 quilômetros de Natal, e Campo Redondo, 30 a mais da capital do
Estado. Com o acúmulo das águas gerado por dias e dias de chuvas, o açude Mãe
D’Água, em Campo Redondo, logo atingiu o ponto máximo de sua capacidade, e o
risco de transbordamento era iminente. Logo, os moradores que viviam próximos
ao açude informaram rapidamente as autoridades de que algo terrível estava para
acontecer.
Se a barragem do açude de Campo Redondo não
suportasse a força das águas, elas teriam um destino rápido e devastador,
escoando pelo rio Trairi até o açude Santa Cruz. Os recursos de comunicação
ainda eram precários — o único meio era o telefone instalado na antiga empresa
de telefonia do Estado, a TELERN. Foi através desse dispositivo que a
telefonista de Campo Redondo, Maria de Fátima, insistentemente tentou avisar a
cidade vizinha sobre o que estava por vir. O detalhe é que, mesmo com a
natureza dando sinais claros, ninguém acreditava na mensagem da funcionária da
TELERN. Motivo? Era 1º de abril, popularmente conhecido como o Dia da Mentira.
O tempo não esperou! “O açude Mãe D’Água estourou.”
A população ficou desesperada, e, em minutos, dezenas de casas foram destruídas
e centenas de pessoas ficaram desabrigadas. Em menos de duas horas, Santa Cruz
também foi atingida pela enxurrada, e mais destruição foi registrada. Em meio
ao caos, surgiu uma figura que foi fundamental, assim como a telefonista: o
mensageiro! Com as notícias se espalhando, logo familiares que viviam em Natal
tomaram conhecimento, e o clima de angústia e desespero tomou conta de todos.
Fátima recebia ligações de familiares das vítimas, querendo notícias dos seus
parentes, e só havia uma forma de confirmar se essas pessoas estavam bem,
desabrigadas ou mortas. Um jovem rapaz que trabalhava como mensageiro na
TELERN, de posse de uma simples bicicleta, assumiu esse ofício de encarar a
correnteza e cumprir o seu papel: saber como estavam aquelas famílias e voltar
para o prédio da TELERN com boas e más notícias.
Geraldo Gomes da Silva era o nome do mensageiro,
mas, em Campo Redondo, aquele bravo e corajoso jovem era conhecido como
“Ladinho”. Segundo testemunhas daquele fatídico dia, o mensageiro percorreu a
cidade dezenas de vezes, correndo o risco de ser arrastado ou engolido pelo
verdadeiro rio caudaloso. Há quem diga, ainda hoje, que “Ladinho” chegou a
levar a bicicleta nas costas para ir de um ponto a outro de Campo Redondo, onde
era inviável trafegar. A noite chegou e, devido aos danos no sistema de energia
elétrica da cidade, tudo ficou às escuras. O sistema de telefonia continuou
funcionando porque um caminhoneiro emprestou a bateria do veículo para que os
equipamentos continuassem ativos.
Mesmo na escuridão, o mensageiro continuou. Ele conhecia
bem a cidade — as pequenas ruas, becos, ladeiras e caminhos. Em Natal, a chuva
era de lágrimas de desespero. Lembro que minha mãe foi comigo até a casa da
minha tia, onde estava também um tio, no bairro Alecrim. Todos mostravam uma
aflição que nunca esquecerei. Foi uma madrugada de espera por notícias, até que
as informações foram atualizadas: minha família estava bem, mas muita gente
perdeu tudo nas duas cidades. Os órgãos do governo, na ocasião da tragédia,
fizeram uma contagem triste e dolorosa. Mais de mil casas destruídas, centenas
danificadas, três mil pessoas desabrigadas e seis mortes registradas pelo Corpo
de Bombeiros. No dia 2 de abril, a chuva veio serena, junto com um silêncio
quebrado apenas pelo choro de quem não sabia o que fazer nem para onde ir.
“Ladinho” não dormiu — fez de tudo para, de alguma forma, amparar do seu jeito
de mensageiro o povo desolado e agora sem endereço para ele enviar e saber das
notícias.
O tempo passou, e as duas cidades se ergueram,
recuperando suas identidades — tijolo a tijolo, telha por telha, de mão em mão.
Muitos que testemunharam a enchente do Mãe D’Água de 81 agora navegam no mar da
eternidade, mas a história, que completou neste ano de 2025, 44 anos, ainda
vive na memória de quem ouviu contar. Das poucas vezes que tive o privilégio de
falar sobre o assunto com aquele que ficou na lembrança de poucos, senti um
misto de sentimentos: tristeza por ele não ter sido lembrado em ocasiões
pertinentes à tragédia e orgulho por ter feito parte de uma história marcada
também pelo heroísmo de tantos que ficaram ocultos — sem estátuas, medalhas e
homenagens. No caso do meu tio Geraldo Gomes da Silva, o “Ladinho”, que morreu
aos 70 anos na casa de uma das irmãs, minha mãe, em Natal, eu me senti na
responsabilidade e obrigação de entender, refletir e compartilhar que, como
também um mensageiro de notícias atuais, as nossas próprias enxurradas,
desabrigos, desabamentos e angústias, o que de fato a vida quer é que deixemos
de ser apenas o mensageiro corajoso para nos tornarmos a própria mensagem.
Por: O Equilibrista
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