O youtuber Lucas Pavanato, hoje com 26 anos, surgiu
como um dos típicos ativistas de direita ligados ao Movimento Brasil Livre
(MBL) que ganharam visibilidade durante os atos pelo impeachment de Dilma
Rousseff, com vídeos polêmicos, abordagens desrespeitosas nas ruas e, não raro,
uso de fake news. Em 2022, tentou a sorte na política pela primeira vez, pelo
Partido Novo, mas não se elegeu deputado estadual em São Paulo.
Dois anos depois, a história mudou: com mais de
161 000 votos para a Câmara paulistana pelo PL, tornou-se o vereador mais
votado do país e uma referência bolsonarista para parlamentares de todo o
Brasil. Mal sentou na cadeira, já apresentou 35 projetos de lei, boa parte
destinada à sua agenda conservadora, em especial contra a diversidade de
gênero, tema que inspirou quatro propostas.
São dele iniciativas que barram vagas para pessoas
trans em concurso público e que definem o sexo biológico como único critério
para competidores no esporte e no acesso a locais públicos, como banheiros.
Embora nenhum tenha avançado, até mesmo por dúvidas razoáveis sobre a
constitucionalidade, esse tipo de iniciativa ajuda a mobilizar o eleitorado
conservador e, por isso, virou a nova coqueluche da direita nos Legislativos
estaduais e municipais pelo país.
A questão de gênero não é o único alvo desses
políticos. Sob o guarda-chuva desse tipo de ofensiva estão propostas ligadas à
religião, ao aborto e ao uso de drogas, por exemplo. Na segunda-feira 14,
dezenas de parlamentares municipais de todo o país se reuniram na Câmara de São
Paulo para lançar a Frente Nacional Contra o Crime Organizado. No evento, a
vereadora paulistana Amanda Vettorazzo (União Brasil) apresentou um pacote com
vinte projetos de lei, divididos em três “eixos de combate” (cultural,
econômico e estrutural), que serviriam de modelos para os colegas de outras
cidades espalharem as iniciativas. Há propostas para dar gratificações a
policiais militares, agravar a criminalização das ações do Movimento de
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), institucionalizar a internação
compulsória de dependentes químicos e vetar que entes públicos contratem
artistas que cantem músicas criticando as polícias ou fazendo apologia ao
consumo de entorpecentes.
O cerco ideológico-musical, aliás, é um bom exemplo
da nova onda. “Inspirada” no rapper Oruam, um dos fenômenos do gênero e um dos
mais ouvidos nas plataformas de streaming musical, a ofensiva, que ganhou o
nome de “lei anti-Oruam”, já levou à apresentação de proposituras com essa
finalidade em mais de 100 cidades e em ao menos vinte capitais. O mote para o
cerco conservador é, além das letras de rap, trap e funk, o fato de Oruam ser
filho de Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, preso desde 1996 por
tráfico e homicídio e apontado como um dos líderes máximos da facção criminosa
Comando Vermelho. O artista de 24 anos se tornou alvo também por ter sido preso
duas vezes em fevereiro deste ano, uma delas por abrigar um traficante
foragido. Embora o texto-base da lei não fale claramente em proibição do “funk”
ou de qualquer outro estilo, é exatamente este o ponto usado por artistas,
produtores e especialistas que tentam barrar essas propostas sob o argumento de
que elas representam a criminalização de um gênero musical e cerceiam a
liberdade de expressão.
Não faltam outros exemplos da nova sanha legislativa
da direita. No último dia 28 de março, a Câmara de Belo Horizonte aprovou, por
28 votos a 8, um projeto de lei que inclui a Bíblia entre os materiais
paradidáticos que podem ser usados em escolas. Na justificativa, a vereadora
Flávia Borja (Democracia Cristã) disse que a Bíblia é não só uma referência
religiosa, mas um “livro histórico”. “As histórias bíblicas utilizadas deverão
auxiliar os projetos escolares de ensino correlatos nas áreas de história,
literatura, ensino religioso, artes e filosofia, bem como outras atividades
pedagógicas complementares pertinentes”, diz o texto. Pedro Patrus (PT)
apresentou uma emenda proibindo a conotação religiosa da abordagem, mas ela foi
rejeitada por 25 votos contrários e 13 a favor. “Eu gosto de ler a Bíblia, sou
católica, não tenho medo de nenhuma fé. O medo que eu tenho é da transformação
do Brasil em um país fundamentalista ao arrepio da Constituição”, diz a
vereadora Cida Falabella (PSOL), que irá à Justiça para derrubar a lei caso ela
seja sancionada pelo prefeito Álvaro Damião (União Brasil).
A disputa judicial é quase sempre o destino desse
tipo de projeto, porque na maioria das vezes extrapola a prerrogativa do
vereador ou deputado estadual de legislar sobre o tema. Em São José do Rio
Preto, cidade do interior paulista, vereadores vivem uma cruzada contra o
Ministério Público. Sete meses depois de a Promotoria conseguir derrubar no
Tribunal de Justiça uma lei que obrigava bibliotecas a disponibilizarem a
Bíblia, os parlamentares aprovaram a obrigatoriedade de alunos das escolas
municipais rezarem o pai-nosso, uma oração cristã, ao menos uma vez por semana
— quem tiver motivo para não participar da oração deverá apresentar
justificativa. O Sindicato dos Trabalhadores em Educação (Atem) entrou com uma
Ação Direta de Inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça de São Paulo e
conseguiu a suspensão do texto legal com uma liminar. Em São José dos Campos,
no Vale do Paraíba paulista, a vereança tornou lei a proibição de atletas trans
disputarem competições locais. Coube à Procuradoria-Geral de Justiça ajuizar
ação no TJSP para que o texto fosse declarado inconstitucional por violar o
pacto federativo, já que o município não tem competência para legislar na área
esportiva.
Além de projetos de lei, a onda conservadora também tem
apoiado outros textos contra legislações federais que regulam determinado tema.
Em Curitiba, por exemplo, os vereadores aprovaram em 7 de março, por 29 votos a
5, uma moção de repúdio ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda) por causa da resolução 258/2024, que “estabelece um
protocolo específico em caso de gravidez de criança e adolescente resultante de
violência sexual, prevendo a oferta à vítima, dentre outras opções, da
interrupção legal da gestação, que é garantida pela legislação no caso de
estupro”. Vereadores repudiaram o texto por entenderem que há desobrigação de
análise clínica para autorização do aborto legal. As duas sessões para análise
foram feitas debaixo de protestos contra e a favor da iniciativa.
A onda conservadora tem dois objetivos não
declarados. O primeiro é forçar, de baixo para cima, uma pressão pela revisão
de vários pontos do ordenamento constitucional brasileiro. “A Carta de 1988
falhou”, sentencia a vereadora Amanda Vettorazzo, que, como outros líderes do
MBL, tenta deslanchar uma pressão nacional por uma nova Constituinte. Há pouco
mais de uma semana, um de seus principais líderes, o deputado federal Kim
Kataguiri (União Brasil-SP), começou a buscar assinaturas para propor um
plebiscito para uma nova Carta Magna, que, na opinião dele, deveria incluir
pena de morte e prisão perpétua. Na avaliação de Antonio Carlos de Freitas
Júnior, doutor em direito constitucional pela USP e professor da Fundação Santo
André, o movimento conservador é exatamente uma tentativa de reescrever a Carta
de 1988. “A Constituição é um pacto geracional que impede esse tipo de avanço.
Como eles não conseguem no Congresso, porque lá tem assessoria, corpo técnico e
legislativo muito mais preparado, a onda conservadora está encontrando guarida
na falta de qualidade técnica de Câmaras Municipais e Assembleias”, diz.
O outro motivo, mais inconfessável, é político. A
nova ofensiva nos Legislativos locais, com pautas sabidamente
inconstitucionais, visa apenas alavancar o nome de lideranças que sonham com
voos maiores. É quase certo que esses vereadores estarão em busca de vagas no
Congresso em 2026. Diferente do furacão bolsonarista de 2018, quando uma legião
chegou à Câmara ancorada em Jair Bolsonaro, agora são as pautas de costumes e
de segurança pública que dão o embalo para o movimento. A tática rende votos em
um país assustado com a violência, de ampla maioria cristã e conservador em
temas como drogas, aborto e gênero. Mas é uma distorção da atividade do
vereador, em quem a população confiou para resolver questões como moradia,
saúde, educação, zeladoria e mobilidade urbana. Motivos para que sejam lançadas
novas cruzadas, portanto, é o que não falta.
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