Um dos principais especialistas em relações de
consumo das classes populares no país, Renato Meirelles afirma que restringir o
parcelamento sem juros no cartão de crédito culpa o consumidor, que é a
"vítima dos juros altos", sem atacar a raiz do problema.
Presidente do Instituto Locomotiva, Meirelles ganhou
notoriedade nos anos 2000, quando, à frente do Data Popular, ajudou a definir
no debate público o que era e como se movia a classe C, à época fartamente
descrita como a "nova classe média".
Nas discussões em curso em Brasília sobre como
baixar os juros rotativos do cartão (o cobrado de quem atrasa o pagamento), que
chegam a 430% ao ano, grandes instituições bancárias têm pressionado pelo fim
do parcelamento sem juro sob a alegação de que este tipo de transação alimenta
a inadimplência, que seria a causa do juro alto. Trata-se de uma batalha em
torno de R$ 1 trilhão, equivalente a metade das transações por cartão no país.
O pesquisador afirma que o argumento é falacioso e
aponta que o fim da modalidade de crédito, ou restrições a ela, pode ter dois
tipos de impacto negativo na economia real.
O primeiro, afirma, é a diminuição no consumo
propriamente dito da classe C, onde 6 em cada 10 pessoas possuem cartão de
crédito e ele é o seu principal meio de financiamento no cotidiano ou da
atividade profissional.
O segundo será uma retração nas receitas de pequenos
negócios e profissionais liberais. Consultórios de dentistas, por exemplo, só
conseguem oferecer determinados tratamentos para pessoas com renda mais baixa
graças ao parcelamentos sem juros no cartão.
A seguir os principais trechos da entrevista de
Meirelles ao UOL.
UOL: Nas discussões de baixar os juros do rotativo
do cartão de crédito, que hoje são uma prioridade do Ministério da Fazenda, os
bancos propõem algum tipo de limitação do parcelamento sem juros no cartão.
Qual a relação entre uma coisa e outra?
RENATO MEIRELLES: Não há nenhuma relação entre as
duas coisas. Os juros do rotativo só têm esse patamar absurdo por falta de
concorrência. Essa história de acabar com o parcelado sem juros é uma maneira
de culpar o consumidor pelos juros altos, quando na verdade ele é a vítima.
UOL: Por quê?
MEIRELLES: Quando alguém tem um contratempo e tem
que atrasar o pagamento a fatura do cartão, começa uma bola de neve de juros
infinitos. São esses juros infinitos do rotativo que provocam o
superendividamento da população, não o parcelamento sem juros, que permite
acesso a bens e serviços que as pessoas das classes C, D e E normalmente não
conseguiriam acessar sem o parcelamento.
MEIRELLES: Para alguém da classe A ou B, a maioria
dos bens parcelados, ela poderia adquirir à vista, tanto usando o cartão como
por outros meios. Ela usa o cartão para capturar outros benefícios, como
milhas, por exemplo, e ela não deixaria de consumir. Na classe C, o cartão
virou o principal meio de crédito da maioria das pessoas. A pessoa sabe o
melhor dia para comprar e se programa com muito cuidado para que o pagamento
caia depois que cai o salário, por exemplo. Ou quando a pessoa tem um pequeno
negócio é o cartão seu principal meio de obter capital de giro. Pegue o dono de
uma mercearia, por exemplo, ele usa o seu cartão de crédito pessoal para
comprar, parcelado no cartão, mercadoria para seu estoque. Então, discutir o
fim do parcelado sem juros ou restringi-lo de alguma maneira é uma abordagem
focada no uso do cartão pelas classes A e B, quando o impacto maior vai atingir
muito negativamente os estratos que compõem a maioria da população.
UOL: Que impactos são esses?
MEIRELLES: O primeiro é a forte restrição do consumo
das classes C e D e isso tem um desdobramento mais amplo, que é retardar o
crescimento econômico do país. O segundo é criar um novo ambiente de
dificuldades para empreendedores e profissionais liberais. Num pequeno salão de
beleza, por exemplo, uma parte dos serviços são mais caros, como é o caso do
lace de cabelo [um tipo de aplique de fios, que pode ultrapassar R$ 2.000], e
que a clientela quase que só pode pagar por isso se parcelar sem juro no
cartão. A mesma coisa num consultório de dentista num bairro popular. A maior
parte dos tratamentos são oferecidos a clientes que pagam fazendo aquela
despesa caber no orçamento, pelo parcelamento sem juro. A questão básica é para
onde está indo a discussão de uma coisa importante, que é como reduzir o juro
do rotativo do cartão, que é absurdo. Misturar com o parcelado sem juro é um
crime, é tomar a direção errada.
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