Agência Brasil
Entidades e pesquisadores da área da educação
afirmam a necessidade de revogação da lei de 2017 que estabeleceu o novo ensino
médio e sugerem a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio publicadas em 2012. Na última semana, o Ministério da Educação
(MEC) abriu consulta pública para avaliação e reestruturação da política
nacional de ensino médio, mas, para os especialistas, antes do diálogo, é
urgente a revogação da medida.
“E, ao ser revogado, é necessário que o governo
receba estudantes, professores e profissionais da educação pra poder formular e
concretizar um modelo de ensino que faça sentido pra nossa geração”, disse à
Agência Brasil a presidenta da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas
(Ubes), Jade Beatriz.
Para o professor e pesquisador da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (USP), Daniel Cara, a abertura de diálogo
é sempre positiva, mas a consulta do MEC não deixa a agenda completamente aberta
para discussão.
“Ela restringe a participação a um cronograma muito
apertado e, simplesmente, a questões de implementação da reforma, sendo que a
demanda dos estudantes e dos professores é a revogação”, disse. “O que a
reforma tem gerado de desorganização das redes, de desestruturação curricular e
de baixíssima formação dos estudantes é algo que precisa ser, de fato,
denunciado”, completou.
A consulta tem prazo de 90 dias para as
manifestações, com possibilidade de prorrogação. Ela será implementada por meio
de audiências públicas, oficinas de trabalho, seminários e pesquisas nacionais
com estudantes, professores e gestores escolares sobre a experiência de
implementação do novo ensino médio nos 26 estados e Distrito Federal.
Para a professora e coordenadora do Observatório do
Ensino Médio da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Mônica Ribeiro da Silva,
a estratégia da consulta pública, pelo prazo apresentado, pode desmobilizar o
debate nacional que já está em andamento. Ela sinaliza que não há a disposição
do governo para uma mudança mais estrutural, de revogação, mas sim de fazer
ajustes naquilo que já existe na reforma do ensino médio.
“Esperávamos um ministério que, de fato, pusesse um
fim àquela lei que nasceu do golpe de 2016, pelo governo [Michel] Temer, por
medida provisória, no debate apressado no Congresso Nacional e que acabou sendo
regulamentada em cada rede estadual de um jeito. Nós temos, hoje, 27 ensinos
médios pelo Brasil. Nós temos currículos com 200 páginas e currículos com 900
páginas, todos eles com assessoria privada. Este novo ensino médio é um enorme
mercado que existe apenas para atender as fundações empresariais”, apontou a
professora da UFPR.
Procurado pela reportagem, o MEC encaminhou
declaração pública do ministro da Educação, Camilo Santana, em que esclarece
que a consulta é exatamente para orientar e subsidiar as decisões que serão
tomadas.
“Já identificamos que há necessidade de correções,
necessidade de um bom debate. Porém, acho que é do processo democrático, até porque
o ensino médio já está em andamento na sua implementação, [acho que] é
importante ouvir as entidades, os especialistas da área, os estudantes,
professores, para que a gente possa, com muita responsabilidade, tomar
decisões. Nosso grande objetivo é garantir qualidade, um bom ensino médio para
os estudantes jovens do Brasil”, disse.
Segundo o ministro, as decisões precisam ser tomadas
brevemente, pois as diretrizes da política servirão de base para a elaboração
do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2024.
No entanto, uma pesquisa recente do Serviço Nacional
de Aprendizagem Industrial (Senai) e do Serviço Social da Indústria (Sesi)
sobre as mudanças que estão sendo realizadas apontam o desconhecimento da
população sobre a reforma. “Infelizmente, não houve uma articulação estruturada
sobre as mudanças trazidas entre a aprovação da nova legislação, em 2017, e o
início da obrigatoriedade de sua implementação, no início de 2022”, disse o
diretor-geral do Senai e diretor-superintendente do Sesi, Rafael Lucchesi.
O novo ensino médio
A atual política do ensino médio, Lei 13.415/2017,
foi aprovada em 2017 com o objetivo de tornar a etapa mais atrativa, implantar
o ensino integral e evitar que os estudantes abandonem os estudos.
Com o modelo, parte das aulas deverá ser comum a
todos os estudantes do país, direcionada pela Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). Na outra parte da formação, os próprios alunos poderão escolher um
itinerário para aprofundar o aprendizado. Entre as opções, está dar ênfase às áreas
de linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas ou ao ensino
técnico. A oferta de itinerários, entretanto, depende da capacidade das redes
de ensino e das escolas.
A implementação ocorre de forma escalonada até 2024.
Em 2022, ela começou pelo 1º ano do ensino médio com a ampliação da carga
horária para, pelo menos, cinco horas diárias. Pela lei, para que o novo modelo
seja possível, as escolas devem ampliar a carga horária para 1,4 mil horas
anuais, o que equivale a sete horas diárias. Isso deve ocorrer aos poucos.
Segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de
Educação (Consed), mesmo em meio à pandemia de covid-19, as secretarias
estaduais mantiveram o cronograma e todos os estados já estão com os
referenciais curriculares do novo ensino médio homologados. Em 2023, a
implementação segue com o 1º e 2º anos e os itinerários devem começar a ser
implementados na maior parte das escolas. Em 2024, o ciclo termina, com os três
anos do ensino médio.
Além das atribuições no Observatório da UFPR, Mônica
coordena uma rede de 23 grupos de pesquisa pelo país que acompanha, desde 2017,
a regulamentação e implementação do novo ensino médio nas escolas. Segundo ela,
o movimento estudantil, as entidades de classe e as sociedades científicas já
entregaram ao MEC o resultado desses anos de pesquisa que aponta os problemas
da política atual do ensino médio, material que poderia ser utilizado para
embasar a revogação e acelerar as mudanças necessárias.
Segundo o presidente da Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, as entidades de classe querem
o retorno do Fórum Nacional da Educação, na composição que existia em 2016,
antes de ser alterado pelo governo Michel Temer. O fórum é um espaço de
interlocução entre a sociedade civil e o governo, estabelecido pela lei do
Plano Nacional da Educação (PNE), de 2014.
“Ele é composto de 50 entidades e movimentos da
educação e tem a tarefa de avaliar políticas públicas e fazer propostas ao MEC
sobre os melhores encaminhamentos. Entendemos que esse espaço, restituído sua
composição de 2016, seria o espaço adequado para fazer esse debate do ensino
médio”, disse ele, também defendendo a revogação da atual lei.
Diretrizes adequadas
Para Araújo, uma das alternativas é a implementação
das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio definidas em 2012
pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) após extenso debate, mas que acabaram
paradas com a desorganização política do país a partir de 2013. “Elas apontam a
perspectiva de projeto entre as disciplinas, para integrar esse processo de
formação e encontrar uma forma de deixar o ambiente mais adequado no processo
de ensino e aprendizagem”, explicou o presidente da CNTE.
O texto traz avanços quanto à concepção do ensino
médio como um direito social de cada pessoa e dever do Estado em sua oferta
pública e gratuita a todos. A resolução do CNE articulou os eixos do trabalho,
da ciência, da tecnologia e da cultura para formação integral do estudante,
incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico.
Para a professora da UFPR, “nenhuma lei é eterna e,
assim como foi mudada em 2017, pode ser alterada novamente”. “Nós tínhamos no
Brasil experiências muito interessantes dos governos do PT antes dessa reforma,
por exemplo, as diretrizes curriculares nacionais de 2012, que sequer foram
implementadas, que trazem uma outra concepção do ensino médio e de juventude”,
ressaltou.
“Nós tínhamos a experiência do Pacto Nacional pelo
Fortalecimento do Ensino Médio, a experiência do Ensino Médio Integrado. Então
não dá para dizer também que não tem o que por no lugar. E, obviamente, a
partir daí outras contribuições seriam necessárias”, acrescentou.
Segundo Daniel Cara, a aplicação das diretrizes de
2012 fariam com que o Brasil construísse “um caminho de fortalecimento da etapa
do ensino médio”. Além disso, para ele, uma alternativa seria colocar na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) que a implementação dos
itinerários fosse facultativa para as redes e escolas.
“E eu tenho certeza que se ela for facultativa, em
pouquíssimo tempo, a maior parte das redes públicas não vai seguir com a
reforma, o que significa concretamente que a reforma não é boa, elas estão
sendo forçadas à implementação”, argumentou.
Disciplinas: brigadeiro e sabonete
A professora Mônica Ribeiro afirma que o novo ensino
médio fragiliza a formação dos estudantes e aumenta a evasão e abandono
escolar. Ela cita a redução de carga horária de disciplinas como sociologia,
filosofia e biologia, “que os estudantes precisam, inclusive se quiserem cursar
a universidade”, e critica a substituição dessas por “coisas” como: “fazer
brigadeiro, como cuidar dos pets, como fazer sabonete”.
“O que significa para um jovem de escola pública,
que é 85% das matrículas no Brasil do ensino médio, cursar essas
quinquilharias? Será que nós já não temos elementos suficientes para uma
intervenção mais séria? Enquanto se realiza essa famigerada consulta pública,
os estudantes continuarão a ter essas ‘coisas’ que eu me recuso a chamar de
disciplinas. Isso é que eu chamo de uma violência”, disse.
Já para a presidenta da Ubes, Jade Beatriz, além da
grade curricular ruim, o novo ensino médio desconsidera as diversas realidades
estruturais do país e agrava as desigualdades sociais. “Enquanto estudantes de
escolas particulares estão nos laboratórios de robótica, química e física,
temos aula de como fazer brigadeiro na grade curricular da escola pública. Isso
é muito injusto! Nesse modelo não há um incentivo e capacitação para querer
adentrar a universidade”, argumentou.
“Nossas escolas não têm estrutura. É só fazer um
recorte e ver a fotografia da escola pública hoje: teto desabando, salas
alagadas quando chove, banheiro sem pia, escola sem banheiro, muitos sem
saneamento e sem merenda. [...] Como aumentamos tanto a grade curricular para
escolas que não tem o mínimo de estrutura pra executar?”, questionou.
“Muitos estudantes precisam frequentar mais de uma
escola pra poder conseguir cumprir toda grade. Isso envolve muito, envolve
passagem de ônibus, envolve alimentação, envolve um pequeno recurso que pode
vir a ser muito para os estudantes, que por consequência, acabam desistindo”,
finalizou.
Estrutura insuficiente
Além disso, para Mônica, é falsa a possibilidade de
escolhas dos estudantes, já que muitas escolas, justamente pela falta de
estrutura citada por Jade, oferecem apenas um itinerário formativo, sobretudo
aquelas dos municípios menores ou das periferias das grandes cidades, “gerando
uma desigualdade imensa do acesso a conhecimento entre os estudantes”.
Nesse mesmo sentido, o presidente da CNTE lembra que
em Pernambuco, onde um modelo semelhante ao novo ensino médio já vinha sendo
aplicado há 17 anos, mais de 800 mil jovens entre 15 e 29 anos não concluíram o
ensino médio, enquanto aqueles que concluíram ou estão matriculados somam 341
mil. Segundo ele, o modelo passou a ser aplicado quando Mendonça Filho era
vice-governador de Pernambuco, o mesmo que foi ministro da Educação do governo
Temer, na ocasião da reforma nacional.
“Quando você fecha três turnos da escola e coloca
ela em tempo integral, você tira a juventude da escola, principalmente os mais
pobres que precisam ajudar a família a ter o sustento do dia a dia”, disse
Araújo, também destacando negativamente o esvaziamento do conteúdo disciplinar.
Para o professor Daniel Cara, apesar de algumas
poucas escolas conseguirem ofertar a educação integral e o aprofundamento
curricular dos itinerários, a reforma do ensino médio fracassou.
“Temos sempre que pensar a política educacional na
escala, são 180 mil escolas no Brasil e boa parte oferta o ensino médio. E
pensando no conjunto das escolas, a reforma hoje tem gerado mais problemas do
que trazido soluções. […] O novo ensino médio está sendo implementado e não
está acontecendo, porque ele é tão caótico, é tão desorganizado que ele sequer
se estruturou”, explicou. “O problema não é de implementação e organização, o
problema é que a reforma não é adequada”, completou.
Segundo ele, pelo que se tem visto nas escolas e nos
trabalhos relacionados a projeto de vida e empreendedorismo, o Brasil será “uma
fábrica de coachings de Instagram” se houver insistência na atual reforma. “É
um conteúdo completamente absurdo nas escolas, é tratar questões sérias como
filosofia, sociologia, história e geografia como autoajuda. Isso não pode
prevalecer”, disse.
Para o diretor do Sesi/Senai, Rafael Lucchesi, a
reforma vai na direção certa ao superar o modelo de ensino passivo-reprodutivo
e incentivar o protagonismo do estudante na construção de um projeto de vida e
de carreira por meio de uma abordagem interdisciplinar.
“Acreditamos, portanto, que os debates devem ser
direcionados para identificar os gargalos e possibilitar uma implementação
efetiva do modelo”, disse. “Para isso, são indispensáveis investimentos, não só
em estruturas físicas e equipamentos, como também na formação de professores,
cujo papel é determinante para as transformações do sistema de ensino e
manutenção da qualidade da prática pedagógica e dos resultados da
aprendizagem”, destacou.
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