A liminar do ministro Gilmar Mendes que reescreveu o
rito de impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal marca um divisor
de águas. Não se trata de interpretação, mas de mutação, ou melhor, de
mutilação constitucional por canetada. Um único ministro eliminou o direito do
cidadão de apresentar denúncia, entregou ao procurador-geral da República um
monopólio acusatório inexistente na Constituição, elevou o quórum do Senado a
patamar impraticável e aboliu o afastamento cautelar do acusado. É difícil
imaginar gesto mais despudorado de autoblindagem – e mais contrário ao espírito
republicano que o constituinte pretendeu instaurar.
O ministro se justificou dizendo que a Lei do
Impeachment, de 1950, está “caduca”. Ora, leis não “caducam”, a não ser que o
legislador resolva mudá-las. A Lei do Impeachment, aliás, atravessou regimes,
resistiu a crises e nunca foi considerada incompatível com o Estado de Direito.
Tampouco há histórico de perseguição: nunca houve impeachment de ministro na
história republicana moderna. Sugerir “risco sistêmico” ou “ataque ao Estado de
Direito” é transformar divergência política em ameaça existencial – expediente
típico de quem deseja blindar-se contra toda forma de controle. Alterar a
Constituição por decisão monocrática não é defendê-la; é contorná-la segundo
conveniências momentâneas ao sabor dos humores de quem ocupa a cadeira.
A motivação real não é o temor de um golpe
imaginário. É o calendário eleitoral. Em 2026, dois terços do Senado serão
renovados. A liminar nasce desse medo. É a primeira vez que uma Suprema Corte
afirma, em essência, que precisa se proteger do resultado de uma eleição. Isso
não é proteção institucional; é blindagem contra a democracia que implode os
freios e contrapesos que impedem que qualquer poder se torne absoluto.
Ao criar um monopólio acusatório do procurador-geral
da República – figura escolhida em processo politicamente condicionado e, hoje,
dependente do beneplácito dos próprios ministros –, a decisão retira do Senado
sua competência privativa e esvazia o princípio republicano da responsabilidade
difusa. A Constituição define quem julga, mas não restringe quem acusa. O
silêncio é proposital: o impeachment é instrumento político, cuja porta de
entrada não pode ser trancafiada por um único ator estatal. Concentrar esse
poder num só agente é transformar o controle externo do Judiciário em ficção e
reduzir o Senado a um anexo consultivo.
A manobra integra um padrão: decisões monocráticas
convertidas em “miniemendas”, inquéritos sem fim, censuras cautelares
sigilosas, permissões éticas autoconcedidas, interferências diretas no
Congresso. O abuso deixou de ser exceção e virou método. Nenhuma democracia
pode sobreviver quando um dos Poderes assume simultaneamente o papel de juiz,
parte e guardião de sua própria responsabilização. O País assiste, estarrecido,
à construção de um Poder que opera por fora das regras que exige que todos os
demais cumpram. Um movimento que ecoa – se não nos métodos, na lógica – o
apetite tutelar das Forças Armadas no século 20: uma corporação não eleita
(outrora com farda “positivista”, agora com toga “iluminista”) que se impõe
como árbitro supremo da política, altera as regras do jogo e intervém nele à
sua conveniência.
A Corte que se comporta descaradamente como
corporação política: com narrativa, estratégia e mecanismos de autopreservação.
A independência judicial exige garantias; o despotismo judicial exige
blindagens. A liminar disfarça o último com a primeira e o apresenta como
virtude. Mas não há democracia possível se um Poder se declara imune a toda
forma de escrutínio. A mensagem é clara: ninguém nos controla, e qualquer
tentativa de fazê-lo será punida como “ataque às instituições”.
O Brasil precisa de um Supremo forte, não de um
Supremo absoluto. Sem autocontenção, sem limites externos e agora sem canais de
responsabilização, a Corte se coloca acima da República. O que está em jogo não
é o destino de um ou outro ministro, mas o princípio que sustenta governos
livres: o poder que não pode ser controlado não é poder independente, é poder
arbitrário.
A liminar não protege o Estado de Direito. Protege o
Estado contra o Direito. Não salva a democracia. Desfere-lhe um golpe letal.
Opinião do Estadão

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