Um dos maiores enigmas da oncologia moderna é
entender por que as imunoterapias não funcionam para todos os pacientes. Agora,
um estudo, apresentado no Congresso de Oncologia de Berlim e publicado na
revista Nature, indica um caminho inesperado: vacinas de mRNA contra a Covid-19
— como as da Pfizer/BioNTech e da Moderna — podem “acordar” tumores resistentes
e torná-los mais sensíveis a tratamentos imunoterápicos. A informação é do
g1.
Pesquisadores do MD Anderson Cancer Center e da
Universidade da Flórida descobriram que essas vacinas provocam uma intensa
resposta do tipo interferon, uma molécula-chave do sistema imunológico, que
ajuda as células de defesa a reconhecer e atacar o câncer.
O efeito foi observado tanto em experimentos com
animais quanto em grandes coortes de pacientes com câncer de pulmão de células
não pequenas (NSCLC) e melanoma metastático.
Os pesquisadores analisaram mais de 880 pacientes
tratados entre 2015 e 2022. Aqueles que receberam uma vacina de mRNA contra a
Covid até 100 dias antes ou depois do início da imunoterapia tiveram ganhos
expressivos de sobrevida.
- Em pacientes com câncer de pulmão avançado, a
sobrevida mediana aumentou de 20,6 para 37,3 meses.- A taxa de sobrevivência em
três anos subiu de 30,8% para 55,7%.- Em casos de melanoma metastático, o risco
de morte caiu quase 60%.
Esse benefício não foi visto em quem recebeu vacinas
contra influenza ou pneumonia no mesmo intervalo, reforçando que o estímulo
observado é específico da tecnologia de mRNA.
Segundo o oncologista Stephen Stefani, da
Oncoclínicas e da Americas Health Foundation, o estudo traz uma evidência
inédita de como as vacinas de mRNA podem modificar o microambiente tumoral,
tornando as células cancerígenas mais “visíveis” ao sistema imunológico.
“Os autores foram extremamente cuidadosos. Eles
conseguiram resgatar uma quantidade significativa de pacientes com câncer e
avaliaram a exposição à vacina para Covid de plataformas de mRNA — que é
justamente o que gerou tanta discussão durante a pandemia”, explica Stefani.
“Esses pacientes vacinados aumentavam a expressão de
uma proteína chamada PD-L1 no tumor. O PD-L1 é como uma capa de invisibilidade:
ele camufla a célula tumoral, impedindo que o sistema imune a reconheça. As
drogas anti-PD-L1, como o pembrolizumabe, tiram essa capa. Então, quando há
mais PD-L1, o alvo da imunoterapia fica mais claro e o tratamento se torna mais
eficaz.”
Em termos simples, a vacina “reprograma” o sistema
imune para que ele volte a identificar o tumor. O mRNA — a molécula que ensina
o corpo a produzir a proteína do coronavírus — provoca uma onda de interferon
tipo I, que desperta células apresentadoras de antígenos (como macrófagos e
dendríticas).
Elas passam a exibir fragmentos de proteínas
tumorais aos linfócitos T, que então aprendem a atacar o câncer.
O estudo confirmou vários mecanismos pelos quais a
vacina de mRNA aumenta a expressão de PD-L1, segundo Stefani.
“Isso precisa fazer parte das estratégias para
driblar resistências intrínsecas ao tratamento. Já sabíamos da importância dos
anti-PD-L1, mas agora sabemos que pacientes expostos à vacina têm respostas
melhores a esse tipo de imunoterapia”, diz.
Efeito de ‘reinicialização’ imuneNos experimentos
com camundongos, o time americano reproduziu a fórmula da vacina da Pfizer e
mostrou que ela ativa fortemente o interferon — um sinalizador que funciona
como um “grito de alarme” para o sistema imune.
Essa resposta inflamatória controlada ativa uma
cascata de células imunes e faz com que tumores antes “frios” (pouco
infiltrados por linfócitos) se tornem “quentes”, respondendo melhor às drogas
de bloqueio de pontos de checagem, como anti-PD-1 e anti-PD-L1.
Essa resposta inflamatória controlada ativa uma
cascata de células imunes e faz com que tumores antes “frios” (pouco
infiltrados por linfócitos) se tornem “quentes”, respondendo melhor às drogas
de bloqueio de pontos de checagem, como anti-PD-1 e anti-PD-L1.
Stefani resume o fenômeno:
“A imunoterapia expõe o tumor — ela tira o disfarce
das células cancerígenas. Quando a vacina de mRNA aumenta o PD-L1, ela, na
verdade, cria um alvo mais assertivo. É como se ajudasse o sistema imunológico
a identificar melhor as células que precisam ser desmascaradas.”
Mais PD-L1, mais respostaNos humanos, os cientistas
constataram o mesmo efeito. Em amostras de 2.300 biópsias de câncer de pulmão,
pacientes vacinados nos 100 dias anteriores à coleta apresentaram 24% mais
PD-L1 nos tumores — e foram 29% mais propensos a atingir o limiar que permite o
uso de imunoterapia isolada, sem quimioterapia.
“O estudo também mostra que existe um momento ideal
para vacinar”, reforça Stefani. “Quanto mais recente e robusta a imunidade,
melhor a resposta ao tratamento oncológico subsequente.”
Implicações e próximos passosOs autores destacam que
a descoberta não significa que vacinas da Covid-19 tratem o câncer, mas sim que
a tecnologia de mRNA pode ser um potente modulador imune, útil para aumentar a
eficácia da imunoterapia — especialmente em tumores que hoje não respondem bem.

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