No alto do Seridó potiguar, um casarão branco de
1887 guarda vestígios de sua antiga função: cadeia e sede da Câmara Municipal.
As grades continuam ali. As correntes, também. Mas a função daquele prédio
mudou: hoje, é o Museu Histórico de Acari. E é de lá que se conta, por objetos
e memórias, a história do sertão.
No centro do museu, repousa uma imagem de gesso de
traços gastos pelo tempo: a Princesa Isabel, com um semblante grave, segura a
Lei Áurea nas mãos. Mas o povo de Acari a conhece por outro nome. “São
Soubera”, dizem. A alcunha nasceu após um raio atingir a escultura na década de
1970 — um rasgo no céu e no cimento. Desde então, quem passava pela cadeia
fazia o sinal da cruz e murmurava: “Se eu soubesse que ia ser preso, não tinha
feito tal coisa.” A ironia virou devoção, e a imagem da princesa virou santo
protetor dos que temiam o destino entre grades. São Soubera: padroeira dos arrependidos
tardios.
Desde 2021, a direção do museu está sob
responsabilidade do historiador Adriano Campelo, que também é pós-graduado em
Arqueologia e Patrimônio. Ele coordena uma equipe que não apenas mantém o
acervo, mas também elaboram projetos de educação patrimonial e envolvimento
comunitário.
Com mais de 3 mil visitantes por ano, o museu se
estrutura em módulos temáticos que retratam atividades econômicas históricas do
Seridó: pecuária, pesca, algodão. Também há ambientações de uma casa sertaneja,
com destaque para a cozinha do queijo.
A cozinha foi reconstruída com telhas antigas,
paredes de barro, utensílios típicos. Tachos de cobre, peneiras, sacos de
tecido e formas de madeira compõem o cenário. Ali, é possível compreender como
o queijo de coalho e de manteiga eram produzidos em tempos de escassez. O leite
vinha do curral, era fervido, peneirado, moldado e armazenado. Nas palavras de
Adriano, “um alimento de sobrevivência na seca”.
O módulo da cotonicultura é igualmente impactante.
Acari foi um dos principais polos produtores de algodão mocó do país. A
espécie, resistente à seca, era plantada em fazendas familiares. A cidade
possuía campo de sementes, usinas com bulandeiras a vapor, estruturas de
tracionamento animal para descaroçar o algodão. Exportava para o mundo. “Acari
competia com o algodão egípcio e americano”, afirma Adriano.
As ruínas dessas usinas ainda existem. Algumas foram
reaproveitadas como armazéns ou pequenas fábricas. Ainda não fazem parte do
circuito do museu, mas há planos futuros para integrá-las. “Temos vídeos e
imagens. Levar visitantes para lá seria uma experiência poderosa”, diz ele.
Na parte superior do museu, acessível por uma escada
antiga de madeira, está a casa sertaneja. Quarto, sala, utensílios, fotografia,
imagens religiosas. Uma réplica do modo de vida de famílias do Seridó do século
XX. O acesso limitado é compensado por uma transmissão em tempo real via telão
para visitantes com dificuldades de mobilidade.
A preservação do prédio é um desafio. Construído em
1887, com estrutura de madeira e barro, exige manutenção constante. Cupins,
infiltrações, oscilações de temperatura. A escada, original, também é alvo de
preocupação. A iluminação ainda é tradicional, mas a equipe sonha com um
projeto cênico que valorize as peças.
O museu também é um espaço de educação patrimonial.
Uma cartilha produzida pelos historiadores do equipamento traz textos
acessíveis, fotografias e propostas pedagógicas. Está disponível em PDF e QR
Code, mas ainda não é amplamente utilizada pelas escolas.
A maioria das visitas escolares vem de Natal,
especialmente de escolas privadas. Também há visitantes de outros estados e até
do exterior. Famílias da região são presença constante. Vaqueiros, em especial,
se identificam com o museu, que celebra a figura do sertanejo como herói
histórico da resistência nordestina.
Durante a tradicional Festa de Agosto, o museu
realiza exposições temáticas, lançamentos de livros e eventos culturais. Em
2025, celebra 35 anos de fundação com uma programação especial: exposição
comemorativa, lançamento de quatro obras literárias de autores locais e inauguração
de um arquivo histórico anexo.
Adriano Campelo também destaca o caráter comunitário
do museu. O acervo foi construído com base em doações espontâneas de moradores.
Cada peça possui ficha de identificação, nome do doador, ano de entrada e
histórico. É um museu vivo, alimentado por laços afetivos.
Em 2023, o museu foi contemplado com recursos para o
projeto “Condutor Local Mirim”, que formou crianças da rede municipal como
guias culturais. No mesmo ano, foi reconhecido oficialmente como patrimônio
histórico e cultural do Estado do Rio Grande do Norte, por lei sancionada pela
governadora.
Para Adriano, esses reconhecimentos e conquistas
importam, mas o centro de tudo está no impacto cotidiano: “O museu conta a
história de um povo que lutou e que luta pela sobrevivência nesse sertão. Isso
ajuda a entender o presente e agir para o futuro.” Na cidade onde um dia o
castigo dominava os cômodos, agora se ensina memória, empatia e pertencimento.
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