Uma decisão kafkiana
Obscura decisão de Moraes sobre o alcance da
proibição da presença de Bolsonaro nas redes sociais soa mais como ato de
intimidação do que como legítima manifestação da autoridade do STF
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
Alexandre de Moraes tinha o dever de ser claro ao impor medidas cautelares a
Jair Bolsonaro, sobretudo no que concerne à presença do ex-presidente nas redes
sociais. No Estado de Direito, ao réu é dado saber precisamente o teor das
acusações que pesam contra si e, ademais, como deve se comportar. Mas Moraes
foi vago e confuso, o que decerto levou Bolsonaro a se sentir autorizado a
conceder entrevista após um ato político havido na Câmara, no dia 21 passado,
ocasião em que se deixou filmar e fotografar usando tornozeleira eletrônica –
registros que, por óbvio, foram parar nas redes sociais.
Ato contínuo, o ministro intimou os advogados de
Bolsonaro, na noite daquele mesmo dia, a prestar esclarecimentos sobre o
comportamento do réu, sob ameaça de o ex-presidente ser preso preventivamente.
Prudentes, os defensores de Bolsonaro não só prestaram as explicações exigidas,
como pediram que Moraes fosse mais explícito acerca do alcance da proibição de
uso das redes sociais pelo ex-presidente. Afinal, Bolsonaro não controla tudo o
que sai publicado em seu nome.
Em sua resposta, divulgada anteontem, Moraes
conseguiu a proeza de soar ainda mais atabalhoado e, desse modo, aumentar a
insegurança jurídica que deveria ter sanado. Se a decisão original que impôs as
restrições a Bolsonaro já não era um primor de redação, em que pese ter sido
correta no mérito, a nova decisão do ministro é uma aberração na forma e no
conteúdo.
Moraes considerou que, ao protagonizar o ato no
Congresso, Bolsonaro cometeu uma “irregularidade isolada”. Mas, a despeito de
ter reconhecido a violação da medida cautelar – e juridicamente não importa se
ela foi “isolada” –, o ministro descartou a prisão preventiva do ex-presidente,
o que pode ser interpretado como uma decisão política. Na decisão, o ministro
esclareceu que “em momento algum” proibiu o réu de conceder entrevistas ou
discursar em eventos públicos ou privados, desde que respeitado o horário de
recolhimento domiciliar, outra medida cautelar à qual Bolsonaro está submetido.
Pudera. Ao que consta, as liberdades de imprensa e de expressão são garantias
constitucionais em vigor no País.
Contudo, Moraes enfatizou que não admitirá a
“instrumentalização de entrevistas ou discursos públicos como ‘material
pré-fabricado’ para posterior postagem nas redes sociais de terceiros
previamente coordenados”. O que isso significa, só o próprio ministro é capaz
de dizer. Ao que parece, essa foi a fórmula mágica que Moraes encontrou para
garantir formalmente a Bolsonaro seu direito de se expressar – e, à imprensa
profissional, seu dever de informar a sociedade – enquanto, na prática, censura
previamente a palavra do ex-presidente por meio de uma decisão tão obscura que
os padrões de obediência decerto só existem na sua cabeça, e não na letra da
lei.
Não se pode condenar quem veja nessa obscuridade uma
tentativa de Moraes de manter Bolsonaro sob um controle abusivo. Com a espada da
ameaça de prisão preventiva sobre sua cabeça, Bolsonaro decerto não emitirá
palavra. E jornalistas deixarão de obter informações de interesse público. A
lei será o que Sua Excelência achar que é. Evidentemente, não é assim que se
exerce a judicatura num Estado Democrático de Direito digno do nome.
É certo que Bolsonaro é suspeito de ter cometido
gravíssimos crimes contra a ordem constitucional democrática e, por isso, é réu
em ação penal que tramita no STF. Mas justamente pela gravidade dos fatos e
pelo ineditismo do processo, a Corte – e Moraes em particular – deve ser e
parecer ainda mais imparcial, técnica, clara e contida em seus atos. O papel de
um ministro do STF, deveria ser ocioso dizer, é o de zelar pela Constituição,
protegendo direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e servindo de baliza
para a estabilidade institucional do País.
Uma decisão judicial escrita de forma tão truncada,
que precisa ser explicada várias vezes por quem a exarou, demonstra que pode
ter sido fruto de qualquer coisa, menos da boa técnica e da temperança.
Opinião do Estadão
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