Quando era um campeão de popularidade, o presidente
Lula desfilava como o “pai dos pobres”, embalado pelo sucesso de programas
sociais, e também como a “mãe dos ricos”, devido à profícua relação de parceria
com os maiores empresários brasileiros, que tinham contratos bilionários com a
administração federal e recebiam ajuda do governo para conquistar mercados no
exterior.
O Brasil, como dizia o slogan oficial, era um país
de todos. Antes desse tempo de bonança, no entanto, houve um período em que o
petista apostou pesado na estratégia da divisão. Foi em seu primeiro mandato,
quando o escândalo do mensalão eclodiu, ameaçando a sua permanência no cargo.
Para sair das cordas, o “Lulinha paz e amor” da campanha de 2002 aceitou o
conselho do marqueteiro João Santana e passou a alegar que a oposição, que
representaria a elite, estava usando o esquema de suborno parlamentar como
pretexto para derrubar o governo do PT, que seria o primeiro projeto genuinamente
popular a chegar ao poder no país. Nascia, assim, a tese do “nós contra eles”,
que agora volta ao centro do debate como boia de salvação para uma gestão sem
rumo, impopular e frágil politicamente.
O recurso à velha muleta retórica foi uma reação
principalmente à derrubada do decreto que ampliava o imposto sobre operações
financeiras (IOF), editado para aumentar a arrecadação e ajudar o governo a
atenuar o rombo nas contas públicas. Com o voto de quase 400 dos 513 deputados,
a Câmara rejeitou a iniciativa, sob a alegação de que a sociedade não aguenta
mais elevação da carga tributária. Foi uma derrota acachapante para Lula, que,
paradoxalmente, se serviu dela para encontrar um discurso de apelo popular, com
o qual pretende melhorar a sua imagem na base do eleitorado. Em reação ao revés
no Congresso, o presidente e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, passaram a
repetir que o pacote de medidas relacionadas ao IOF tinha como objetivo
promover justiça tributária e social, ao fazer com que os mais ricos paguem
mais impostos para que os mais pobres desembolsem menos. Ou para que a turma do
“andar de cima” contribua mais para que a grande massa do “andar de baixo”
carregue um fardo um pouco menos pesado. Segundo os governistas, essa
redistribuição só não está ocorrendo porque o Congresso, sobretudo o Centrão,
prefere se alinhar ao pessoal da “cobertura”.
Diante do cerco aos parlamentares, o presidente da
Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), resolveu reagir. Em um vídeo divulgado
numa rede social, ele reclamou de que, não bastasse a polarização política,
agora se tenta implantar a polarização social. “Quem alimenta o ‘nós contra
eles’ acaba governando contra todos”, declarou. O deputado também disse que
alertou o Palácio do Planalto sobre a resistência do plenário ao decreto do
IOF: “Capitão que vê barco ir em direção ao iceberg e não avisa não é leal, é
cúmplice”.
Não foi o suficiente para desmobilizar a ofensiva
governista. Com indisfarçável satisfação, petistas espalharam que Motta foi
festejado como herói num jantar com representantes da elite paulistana no
início da semana. Já o presidente Lula tachou de “absurda” a decisão do
comandante da Câmara de pautar a questão do IOF em meio às negociações com o
governo. Por determinação do presidente, a Advocacia-Geral da União recorreu ao
Supremo Tribunal Federal pedindo a declaração de inconstitucionalidade da
derrubada do decreto. A batalha ultrapassa — e muito — as fronteiras da seara
jurídica.
Na Justiça, a AGU alega que o presidente tem a
prerrogativa de mudar tributos regulatórios, como o IOF, e que o Legislativo,
ao anular a medida, teria violado o princípio constitucional da separação dos
poderes. Já os congressistas rebatem afirmando que a mudança proposta não teve
caráter meramente regulatório, mas o objetivo mal disfarçado de aumentar a
arrecadação. Por isso, caberia aos parlamentares avaliar a questão. O caso será
relatado pelo ministro Alexandre de Moraes. “Estamos propondo um reajuste
tributário para beneficiar os mais pobres. O dado concreto é que os interesses
de poucos prevaleceram na Câmara e no Senado, o que é um absurdo”, disse Lula,
que nunca aceitou o fato de ter perdido para deputados e senadores o controle
de 50 bilhões de reais em emendas parlamentares. Na prática, o caso do IOF é um
novo round na disputa de poder entre Executivo e Legislativo. “Sou agradecido
ao Congresso, mas, se eu não recorrer à Suprema Corte, não consigo governar.
Cada macaco no seu galho: eles legislam, eu governo”, acrescentou o presidente.
Mesmo contrariado, Lula tem motivos de sobra para
agradecer aos parlamentares, que nos dois primeiros anos de seu mandato
aprovaram o novo marco fiscal, a reforma tributária e uma série de medidas de
criação ou ampliação de impostos. Com problemas de popularidade e empatado com
os principais nomes da direita nas pesquisas sobre a próxima corrida
presidencial, o petista também depende da boa vontade de deputados e senadores
para tirar do papel ações com potencial eleitoral, como a ampliação da isenção
de imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais.
Em resposta ao recurso da AGU no Supremo, líderes de
partido, contrariados com o que consideram desrespeito à vontade soberana do
Parlamento, espalharam a versão de que o governo terá dificuldade para aprovar
essa agenda, considerada fundamental para impulsionar a eventual candidatura à
reeleição de Lula. O presidente duvida dessa possibilidade porque nenhum
parlamentar, perto de uma eleição, teria coragem de negar um benefício aos mais
necessitados. “Quando a gente coloca que a pessoa que ganha mais de 1 milhão de
reais tem que pagar um pouco mais, é uma rebelião. Dá para fazer tudo isso sem
dar um tiro, sem fazer greve geral, para que este país um dia tenha uma
política fiscal justa”, discursou Lula no lançamento do Plano Safra.
Disciplinado, Haddad reforçou o coro. O ministro
vive um momento curioso no governo. Depois de ser fritado de forma ininterrupta
pelo presidente, pelo chefe da Casa Civil, Rui Costa, e pela ex-presidente do
PT e atual ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, Haddad se
tornou o herói da vez no campo governista por ter iniciado a pregação em defesa
da justiça tributária em bate-boca com oposicionistas na Câmara. Desde então,
ele só recebe elogios dos colegas. Um de seus mantras prediletos é lembrar que
o governo propôs taxar 140 000 cidadãos de alta renda para permitir que 25
milhões de pessoas não paguem nada ou paguem menos. “Pode gritar, pode falar,
vai chegar o momento de debater, mas nós temos que fazer justiça no Brasil”,
declarou o ministro, sob o olhar do presidente, no lançamento do Plano Safra. A
insistência de Haddad nessa tecla não deixa de ser o reconhecimento de que seu
plano original foi abandonado. Desde que assumiu o cargo, ele tentou fazer um
ajuste fiscal de forma gradual, combinado propostas de aumento de arrecadação,
como a tributação de fundos exclusivos, com a tentativa de adotar medidas
destinadas a segurar a expansão dos gastos públicos. É uma situação
insustentável.
Como se sabe, muito pouco foi feito na área da
contenção de despesas porque Lula, Rui Costa e Gleisi Hoffmann resistiram — e
resistem — a isso. Se as mudanças no IOF forem ressuscitadas pelo STF ou por
uma negociação política, o governo ganhará a batalha, mas não a guerra, porque
não está fazendo nada de consistente para desarmar a bomba fiscal, que pode
explodir já em 2027, deixando o próximo presidente eleito sem condições de
bancar até o custeio da máquina pública.
A conta de benefícios assistenciais, por exemplo,
cresceu de forma significativa nos últimos anos. Apenas no mês passado, o
presidente anunciou a criação de quatro novos programas sociais. Está em fase
de estudos uma linha de crédito para os interessados em construir “uma garagem”
ou “um banheiro novo”, e outra para permitir que “os coitados que ficam
entregando comida neste país, numas ‘motinhas’ vagabundas”, comprem veículos
novos. Além disso, será ampliada a distribuição de vale-gás para famílias de
baixa renda e implementada uma nova tarifa social para a energia elétrica. O
governo calcula que somente essa última medida deve beneficiar 60 milhões de
pessoas.
O embate entre “nós e eles” ou “ricos e pobres” pode
até ter impacto eleitoral, mas não resolverá um dos principais gargalos do
país. Um pouco mais de justiça tributária, se houver, também não atenuará a
gravidade do quadro. Ainda há um problema adicional: em meio à polarização
política, quase ninguém está interessado em debater mudanças estruturais, o que
inclui a oposição. Apesar de terem ministérios no governo Lula, União Brasil e
PP trabalham por uma candidatura rival à do petista em 2026 e divulgaram um
vídeo para tentar neutralizar a campanha governista. Na peça, os partidos falam
que o “povo” não aguenta mais o peso de uma gestão com quase quarenta
ministérios e que o governo aumenta as despesas não para beneficiar os mais
pobres, mas para proveito da “companheirada”. “Agora, querem passar a conta
para gente de novo, dizendo que estão do nosso lado. A violência é um peso. O
preço dos alimentos, um peso. E agora querem nos taxar ainda mais”, diz o
locutor.
De certa forma, a reação oposicionista é um
reconhecimento da preocupação com a possibilidade de a muleta retórica da
esquerda pegar tração na opinião pública. Presidente do Instituto Locomotiva,
Renato Meirelles afirmou ao programa Ponto de Vista, de VEJA.com, que o novo
discurso do governo tem ressonância na sociedade: “A população espera que o
governo atue no serviço social e tire dos mais ricos e dê para os mais pobres.
Outra história é se o governo Lula está sendo capaz de fazer isso. Claramente,
ou não está fazendo ou não está sendo capaz de comunicar à população que está
fazendo”.
Desde a sua fundação, o PT advoga ser o
representante das camadas mais pobres, que sempre votaram no partido. No
terceiro mandato de Lula, o presidente registrou perda de apoio nesse segmento
do eleitorado. Alguns especialistas dizem que um sentimento de gratidão por
programas sociais implantados em gestões passadas, como o Bolsa Família, já não
rende mais votos nas urnas, porque são considerados conquistas consolidadas.
Outros lembram que o aumento do custo de vida,
especialmente do preço dos alimentos, e a inação do governo em temas sensíveis,
caso da segurança pública, arranharam a imagem de Lula entre apoiadores
históricos. Haveria ainda um problema conceitual da parte do presidente, que
teria uma visão ultrapassada sobre o considerável contingente de pequenos
empreendedores que não querem a proteção paternalista do Estado, mas
oportunidades para tocar seus negócios. Ser “pai dos pobres”, se já foi
suficiente um dia, já não basta mais. O figurino pode até dar um pouco de
fôlego a Lula, mas dificilmente será a redenção de um governo que não disse a
que veio nem aonde quer chegar.
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