PODER360
Depois de 4 décadas da redemocratização do país, a
extrema desigualdade no meio rural –traço estrutural da formação social
brasileira e uma das principais causas de seus desequilíbrios e conflitos–
pouco ou nada mudou. Essa desigualdade não se reflete apenas em termos de
renda, mas também de propriedade e posse da terra.
Essa é a tese central do artigo “Land Inequality in
Brazil: Conflicts and Violence in the Countryside” (Desigualdade de Terras no
Brasil: Conflitos e Violência no Campo, em português), publicado pelos pesquisadores
da UFABC (Univers idade
Federal do ABC) Artur Zimerman, Kevin Campos Correia e Marina Pereira Silva.
O texto compõe um dos capítulos do livro
Agriculture, Environment and Development: International Perspectives on Water,
Land and Politics, publicado pela editora Springer em 2022, que apresenta
resultados de pesquisas realizadas no Brasil, Índia e Europa.
“Se o país é atualmente um dos maiores produtores e
exportadores de commodities agrícolas, essa produção, provavelmente, é
diferente daquela do antigo proprietário de terras ou latifundiário em termos
de escala, mas semelhante em princípios, mantém a desigualdade rural tão
presente hoje quanto foi no passado”, diz o artigo.
O texto reconhece os avanços quantitativos
realizados pelos governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Lula
(2003-2010) quanto à distribuição de terras em comparação com seus antecessores
e sucessores. Mas sublinha que o tipo de reforma agrária realizada durante
esses períodos foi insuficiente, privilegiando o agronegócio em detrimento da
agricultura familiar.
“A concentração da propriedade ou da posse da terra
é enorme em toda a América Latina –particularmente no Brasil. Apenas 1% da
população concentra a metade de toda a área já apropriada”, diz Zimerman, 1º
autor do artigo, que receb eu
apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) no
projeto “Por que os conflitos agrários se tornam violentos na América Latina)?
Compreendendo a crise alimentar e como aliviar os impactos da violência
agrária”, desenvolvido na Universidade de Londres, no Reino Unido.
“E a modernização protagonizada pelo agronegócio,
que levou alta tecnologia ao campo, não apenas excluiu a população rural de seus
benefícios como diminuiu a oferta de empregos no trabalho agrícola”, continua.
“Conflitos com a segurança particular dos grandes proprietários ou com a
polícia já provocaram, desde 1985 até hoje, 1.836 mortes no campo brasileiro –
564 delas no sul-sudeste do Pará.”
O pesquisador afirma que a diminuição do contingente
de trabalhadores empregados em atividades agropecuárias não deve ser associada
automaticamente ao êxodo rural. Muitas pessoas foram trabalhar nas cid ades, mas continuam
morando no campo.
“A definição
de rural e urbano adotada pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística] baseia-se em parâmetros definidos na época do Estado Novo, entre
1937 e 1945, que já não correspondem à realidade de hoje. O IBGE é uma
instituição respeitável, mas, no tocante a este tema, seus parâmetros, que são
seguidos por outros institutos de pesquisa do continente, estão totalmente desatualizados”,
afirma Zimerman.
E acrescenta: “Critérios mais modernos, propostos
pela OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] e pelo
Banco Mundial, e adotados por autores conceituados como José Eli da Veiga,
Ricardo Abramovay e Ivair Gomes, dentre outros, nos obrigam a redefinir o
tamanho da população rural, que tem sido claramente subestimado.”
“Como detalhamos em nosso artigo, para definir zonas
rural e urbana os organismos internacionais levam em consideração os seguintes
parâmetros: densidade populacional menor ou maior do que 150 habitantes por
km², infraestrutura e distância a uma cidade com mais de 100 mil pessoas.
Quando adotamos esses critérios, o tamanho da população rural da América Latina
praticamente dobra: de 24% para 46%”.
O pesquisador argumenta que esse enorme contingente
populacional está desprovido de uma representação política formal, que poderia
atuar na defesa de seus interesses, dirimindo conflitos. “Enquanto os pequenos
proprietários e trabalhadores assalariados do campo possuem representação
irrisória, a bancada ruralista, que legisla em prol do agronegócio, vai compor
uma bancada com cerca de 280 parlamentares na nova legislatura”, afirma
Zimerman.
O artigo diz ainda que “a desigualdade fundiária é o
vilão dos pobres do interior do Brasil e uma das principais tarefas que os
governos democráticos devem realizar é reduzir esse hiato entre os diferentes
estratos da população”.
REFORMA AGRÁRIA
O estudo afirma que as maiores mudanças em termos de
reforma agrária, que só tomaram impulso depois de a metade do 1º mandato de
Fernando Henrique Cardoso, foram postas de lado pela administração federal em
2016, durante o governo Temer, quando o antigo Ministério do Desenvolvimento
Agrário foi reduzido ao nível de secretaria. Depois, a secretaria foi esvaziada
de suas funções e passou a ser subordinada ao Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento no governo Bolsonaro.
O número de famílias assentadas por ano alcançou
584.655 durante o período Fernando Henrique Cardoso e 614.088 dura nte o período Fernando
Henrique Cardoso e 614.088 durante o período Lula. Caiu para 133.635 ao longo
do governo Dilma e depois para 10.077 no período Temer. Com Jair Bolsonaro
(PL), baixou ainda mais: 9.222.
“O total de famílias assentadas no meio rural
brasileiro desde a redemocratização gira em torno de 1,5 milhão. Além de serem
em número muito pequeno, considerado o montante da população rural, os
assentamentos não modificaram substancialmente o quadro de desigualdade
econômica e social prevalente no campo”, diz Zimerman.
“O Índice de Gini, que mede a desigualdade,
praticamente não mudou nas duas últimas décadas. Há uma grande diferença entre
distribuição de terra e reforma agrária. Além da terra, uma reforma agrária
pressupõe financiamento público e assistência técnica, entre outros
benefícios”, explica.
Um dos resultados do modelo vigente, que privilegia
a grande propriedade e a produção de commodities, é o forte impacto sobre o
preço dos alimentos.
“Nas duas últimas décadas, o preço dos alimentos
quintuplicou na América Latina. E a pressão que isso exerce sobre o orçamento
doméstico é enorme. Nos países desenvolvidos, a fatia do orçamento doméstico
destinada à compra de alimentos varia de 10% a 15%. Nos países não
desenvolvidos e em desenvolvimento, ela consome de 65% a 80%”, diz o
pesquisador.
As crises alimentares registradas nos biênios
2007-2008 e 2011-2012 e agora também durante a pandemia, são temas de uma nova
pesquisa, que está sendo desenhada por Zimerman.
Nesse novo trabalho, o pesquisador pretende ampliar
seu foco, contemplando também:
as aquisições
de terras por grandes investidores estrangeiros (árabes, nórdicos e chineses);
os impactos das mudanças climáticas na violência
agrária;
o papel dos indicadores demográficos globais, com o
aumento da população e o consequente aumento do consumo pressionando o uso da
terra e constituindo um ainda maior fator de violência; e
a polarização política nos países latino-americanos.
O artigo Land Inequality in Brazil: Conflicts and
Violence in the Countryside pode ser acessado por este link.

Nenhum comentário:
Postar um comentário