FOLHAPRESS
Alunos de educação a distância das 11 instituições
ligadas à rede
educacional Laureate no Brasil passaram a ter suas atividades de texto
em plataforma digital avaliadas por um software de inteligência
artificial. A mudança, porém, não foi comunicada aos estudantes.
A informação foi confirmada por cinco professores que
falaram com a Agência Pública sob a condição de anonimato, temendo represália.
“Os alunos não sabem, e assim somos orientados: não podemos informá-los e
devemos responder às demandas como se fossemos nós, professores, os
corretores”, diz Silvana (os nomes foram alterados).
A rede tem mais de 200 mil alunos no
Brasil, onde é dona de FMU | FIAM-FAAM, Anhembi Morumbi, UNIFACS, UniRitter,
FADERGS, UnP, UniFG, IBMR e FPB.
Documento interno obtido pela reportagem que trata do
uso do corretor automático também confirma a situação: “Atenção: esta
informação não deve ser compartilhada com os estudantes!”, registra o texto
grifado em amarelo, que é parte do manual do LTI, o software de correção
empregado, enviado aos docentes.
Procurada, a Laureate respondeu em nota que “acompanha
e analisa as tendências do segmento educacional para disponibilizar à sua
comunidade acadêmica o que há de mais moderno e inovador no mercado, incluindo
a adoção de diversas tecnologias da informação e da comunicação, que apoiem as
atividades pedagógicas e potencializem ainda mais a qualidade do ensino, como o
uso de inteligência artificial”.
“A organização reforça que faz parte da autonomia
universitária de suas instituições encontrar recursos para melhorar a
aprendizagem de seus alunos, tendo o professor como parte fundamental nesse
processo. Todas as decisões estão pautadas nas diretrizes do Ministério da
Educação (MEC), bem como seguem em conformidade com a legislação brasileira em
vigor.”
O LTI funciona com palavras-chave, explica o professor
Jonas. “Ele compara a resposta do aluno, atribuindo uma nota de acordo com a
identificação que considera correta a partir dessas palavras.” Segundo eles, a
correção não é imediata para que o aluno não perceba a utilização do robô, e a
nota só é disponibilizada após alguns dias.
“O estudante está sendo enganado”, diz a professora
Lorena, que afirma sentir-se mal com o fato. “A impressão é que a gente está lá
só para inglês ver. Só pra eles usarem os nossos títulos e poderem validar os
cursos no MEC.”
A denúncia atual chegou ao conhecimento da reportagem
por meio da Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta, espaço de
articulação e mobilização política dos educadores e educadoras das instituições
de ensino superior (IES) privadas.
Estudantes ouvidos pela reportagem alegam nunca terem
sido informados da mudança.
Aluna do quinto semestre de turismo na Universidade
Anhembi Morumbi, em São Paulo, na modalidade presencial, Mitie Nagano, 20, tem
20% das suas atividades da graduação realizadas no EAD. Ela relata que desde o
início do curso a universidade não deixou claro como eram feitas as correções.
“Sabíamos que passavam por um filtro de professores
que corrigiam, pelo que falavam antes. E não chegou até mim a informação de que
isso mudaria e que passariam a usar inteligência artificial”, diz.
Portaria do MEC de dezembro de 2019 permite às
instituições ampliar para até 40% o EAD na grade curricular, mesmo em cursos
presenciais. Exige dos cursos, porém, critérios técnicos adequados e projeto
pedagógico aprovado, além de estabelecer que mudanças no curso presencial
precisam ser “amplamente informadas” aos alunos.
Assim como Mitie, que é representante de classe,
outros dez estudantes confirmaram à Pública que nada sabiam sobre o uso do LTI
em suas atividades de EAD.
“Acredito que é extremamente prejudicial não ter um
profissional capacitado avaliando minhas produções acadêmicas”, reclamou
Maurício, que faz direito na Anhembi Morumbi.
No dia 24 de abril, no atendimento online da Anhembi
Morumbi, a estudante de jornalismo Joana perguntou como são as correções e foi
informada de que são feitas por professores. “Então esse professor corrige
todas as atividades dissertativas do EAD?”, indagou. “Isso mesmo”, foi a
resposta, conforme mensagens mostradas à Pública.
João, outro aluno da FMU, diz que se sente inseguro
com a situação. “Cria a dúvida qual base ele [LTI] está utilizando pra saber se
é correto ou não? Nem sempre a produção de mais e mais correções vence a maior
assertividade manual”.
Erick Quirino, 20 anos, estudante de jornalismo no
mesmo campus que Mitie, também acha que o uso não informado do LTI prejudica os
alunos.
“Se for alguma coisa que faça uma análise semântica
básica, que caça palavras-chaves, o contexto da resposta se perde. E a proposta
das questões dissertativas é justamente que cada aluno possa desenvolver a sua
própria resposta e argumento”, avalia, criticando a falta de transparência.
O professor Jonas teme demissões com a ampliação do
uso do LTI. Segundo ele, a interação com os alunos já é pequena e só acontece
quando a nota é 6 ou inferior — seguindo orientação do próprio manual do LTI.
“O aluno não aprende, não é possível dar um feedback. Iremos formar robôs.”
Os docentes apontam ainda outros problemas no uso do
sistema. “Fui olhar atividade por atividade analisada pelo LTI. A maioria que
tirou dez é tudo plágio. E tem estudante que tirou nota ruim, mas que tentou
escrever”, diz a professora Lorena.
“Se antes, quando corrigíamos atividades, já era
difícil manter a qualidade educacional, uma vez que havia professores com mais
de 7.000 alunos, sem que isso passe necessariamente por uma avaliação humana é
ainda mais sofrível”, afirma Silvana.
Ela alega que, nos treinamentos obrigatórios da
Laureate, online, afirma-se que “a EAD não diminuiu o papel do professor,
fundamental para a articulação e engajamento dos estudantes”. “Mas a verdade é
que os alunos estão abandonados por um sistema robótico que não preza pela
mesma qualidade que o trabalho do docente.”
Não há regulamentação específica para o uso de
inteligência artificial no país.
Atualmente, dois projetos de lei sobre
inteligência artificial tramitam no Congresso Nacional, ambos de autoria do
senador Styvenson Valentim (Podemos-RN).
Um deles cria a Política Nacional de Inteligência
Artificial, e outro estabelece os princípios para o uso dela no Brasil. Na
justificativa, Valentim diz que visa assegurar que o desenvolvimento
tecnológico ocorra de modo harmônico com a valorização do trabalho humano.
Questionado pela reportagem, o MEC afirmou que não
funciona como instância recursal em matéria acadêmica.
“Caso a proposta pedagógica vier a prejudicar a
qualidade do ensino ofertado, tais deficiências serão detectadas nos processos
de regulação, e caberá ao Ministério da Educação adotar as medidas cabíveis,
como ações cautelares de redução de vagas, suspensão de novos ingressos, dentre
outras”, declarou.
Esta reportagem foi produzida pela Agência
Pública e publicada em parceria com a Folha. Leia o texto completo em apublica.org.
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