Há muito tempo prevalece no mundo político a ideia
de que o início de um mandato presidencial é o momento certo para enfrentar as
pautas amargas. Cabe ao chefe do Executivo, recém-legitimado por milhões de
votos, exercer o senso de responsabilidade e fazer não apenas o que os
eleitores desejam, mas o que o país necessita. Em 2027, porém, essa não será
apenas uma questão de bom senso — será uma imposição da realidade. Quem assumir
o comando do Planalto, seja Lula ou qualquer outro, encontrará um
quadro de colapso iminente das contas públicas e uma regra fiscal profundamente
desmoralizada. A “herança maldita”, expressão cara ao vocabulário petista,
deixará de ser um recurso retórico para se tornar um fato incontornável.
O arcabouço fiscal, que foi fruto do esforço
de Fernando Haddad, ministro da Fazenda, vendido pelo governo petista como
símbolo de responsabilidade e equilíbrio nas contas públicas, ruiu diante da incapacidade
do governo de cumprir as próprias regras. A lei que substituiu o antigo teto de
gastos, concebida e aprovada pelo governo Lula em 2023, entrou em vigor com a
promessa de impor limites ao avanço dos gastos públicos e de estabelecer metas
para o resultado fiscal, isto é, a diferença entre o que o governo arrecada e o
que de fato gasta. Mas o discurso de austeridade não resistiu ao primeiro teste
da realidade. Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao
Senado, até o fim do atual mandato cerca de 150 bilhões de reais terão sido
executados fora das regras da nova âncora. E o rombo segue aumentando: na
segunda-feira 3, o Congresso, cúmplice no desmonte da responsabilidade fiscal,
aprovou a retirada de mais 30 bilhões de reais em gastos com Defesa da
contabilidade oficial até 2031. O texto, que agora depende apenas da sanção de
Lula, transforma de vez em letra morta o instrumento criado para conter a
deterioração das contas.
A meta fiscal, que deveria orientar a política
econômica e servir de bússola para o equilíbrio do caixa do país, perdeu o
sentido diante da sucessão de exceções e remendos. O Planalto parece ter se
acostumado a tratar as normas que criou como peças de ficção. “O governo
descumpre as regras o tempo todo”, afirma o economista Marcos Mendes,
pesquisador do Insper e ex-assessor especial do Ministério da Fazenda. “As
despesas tiradas das regras são despesas de qualquer jeito e fazem a dívida
pública crescer da mesma forma.” Desde que o presidente Lula voltou ao poder, em
janeiro de 2023, a dívida bruta do país saltou de 71% para 78% do PIB. A
Instituição Fiscal Independente projeta que o encargo pode alcançar 125% do PIB
no prazo de uma década, caso nenhuma medida concreta seja adotada para conter o
crescente desequilíbrio.
A regra fiscal já não cumpre sua função mais
elementar: conter o avanço da dívida pública. No mercado financeiro, essa
constatação virou consenso. “A cada ano aumenta o número de despesas fora do
arcabouço, e o resultado é que ele não serve para mais nada”, diz Gabriel Leal
de Barros, economista-chefe da gestora ARX Investimentos. O descontrole tem
efeito em cadeia. Com a dívida em trajetória explosiva, cresce a desconfiança
dos investidores — justamente aqueles que financiam o governo ao comprar seus títulos.
O reflexo é direto: o Banco Central se vê impossibilitado de reduzir
a taxa básica de juros, juros. Hoje ela está em 15% ao ano, e foi mantida mais
uma vez nesse nível pela diretoria do BC, na quarta-feira 5. “O investidor
percebe que não há perspectiva de estabilização da dívida e exige um prêmio de
risco maior”, diz João Leme, economista da Tendências Consultoria.
A manobra recente do Congresso para excluir bilhões
de reais em gastos com Defesa do arcabouço fiscal é apenas mais uma rachadura
naquilo que deveria ser a pedra fundamental da contabilidade pública. No fim de
outubro, o mesmo Parlamento já havia autorizado o governo a perseguir o piso, e
não o centro, da meta fiscal. O compromisso oficial para 2025 era de déficit
zero, com margem de tolerância de até 0,25% do PIB. Na prática, a meta passa a
ser o próprio rombo, estimado em 31 bilhões de reais. E ele só deve ser “cumprido”
no papel porque outros 43 bilhões de reais estarão sendo gastos fora da conta
oficial. O episódio envolvendo os gastos com Defesa reacendeu o alerta sobre a
fragilidade do arcabouço. “Esse precedente indesejável aumenta o risco de novas
excepcionalidades surgirem”, afirma Alexandre Andrade, diretor da IFI. O temor
não é infundado. Já aprovado pela Câmara, tramita no Senado outro projeto de
efeito igualmente corrosivo, que retira do alcance da regra fiscal as despesas
com educação e saúde financiadas pelo Fundo Social do Pré-Sal — cerca de 1,5
bilhão de reais —, além dos gastos custeados por empréstimos internacionais.
O próximo presidente não terá apenas a tarefa de
preservar a regra fiscal existente, mas de provar que ela ainda pode ficar de
pé. Se nada for feito, o naufrágio das contas públicas será inevitável. A
própria equipe econômica do governo Lula, chefiada por Haddad e Simone Tebet,
ministra do Planejamento, reconhece encrenca no horizonte para 2027. O avanço
dos gastos obrigatórios, impulsionado por pisos constitucionais e pela
indexação de benefícios ao salário mínimo, ameaça estrangular o caixa destinado
às despesas básicas. “Nenhuma regra vai funcionar se não mudarmos alguns
dispositivos que pressionam o Orçamento”, diz Fabio Giambiagi, pesquisador do
Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas.
Os pisos constitucionais da saúde e da educação,
somados à vinculação do salário mínimo, tornaram-se incompatíveis com os
limites de gastos impostos pelo arcabouço fiscal. Mesmo tendo reconhecido, no
início do ano, que faltarão cerca de 12 bilhões de reais para despesas
discricionárias em 2027, o Ministério da Fazenda insiste em minimizar a
gravidade do problema que ele próprio ajudou a criar. “Ainda há trabalho a ser
feito no esforço de consolidação fiscal”, informou a pasta em nota a VEJA. E
acrescentou: “O próximo mandato presidencial começará em 2027 com uma situação
fiscal sólida”.
Até agora, o mercado ainda não precificou o risco de
uma eventual paralisação de serviços públicos no próximo ciclo político por
causa do desequilíbrio fiscal. Mas os analistas já voltam a atenção para a
antessala do problema: o ano eleitoral de 2026. “Tudo indica que teremos uma
expansão fiscal significativa”, afirma Felipe Tavares, economista-chefe da corretora
BGC Liquidez. A nova proposta em discussão no governo para angariar
popularidade é um programa de transporte público gratuito em todo o país.
Independentemente do mérito, o que mais chama atenção é o custo da ideia:
segundo a Confederação Nacional do Transporte, o impacto seria de 90 bilhões de
reais por ano — quase três vezes o déficit máximo de 31 bilhões que o governo
se esforça para conter em 2025. Não há espaço para acomodar tal despesa dentro
do arcabouço fiscal, e a alternativa — romper novamente a regra — só
aprofundaria o descrédito da política econômica. Resta ao governo encarar a
realidade: sem uma reforma profunda do Orçamento e uma revisão séria dos
gastos, o país continuará marchando rumo a um abismo financeiro.
VEJA


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