domingo, 9 de novembro de 2025

Dívida pública em alta e responsabilidade fiscal em baixa: a bomba-relógio de Lula

 


Há muito tempo prevalece no mundo político a ideia de que o início de um mandato presidencial é o momento certo para enfrentar as pautas amargas. Cabe ao chefe do Executivo, recém-legitimado por milhões de votos, exercer o senso de responsabilidade e fazer não apenas o que os eleitores desejam, mas o que o país necessita. Em 2027, porém, essa não será apenas uma questão de bom senso — será uma imposição da realidade. Quem assumir o comando do Planalto, seja Lula ou qualquer outro, encontrará um quadro de colapso iminente das contas públicas e uma regra fiscal profundamente desmoralizada. A “herança maldita”, expressão cara ao vocabulário petista, deixará de ser um recurso retórico para se tornar um fato incontornável.

O arcabouço fiscal, que foi fruto do esforço de Fernando Haddad, ministro da Fazenda, vendido pelo governo petista como símbolo de responsabilidade e equilíbrio nas contas públicas, ruiu diante da incapacidade do governo de cumprir as próprias regras. A lei que substituiu o antigo teto de gastos, concebida e aprovada pelo governo Lula em 2023, entrou em vigor com a promessa de impor limites ao avanço dos gastos públicos e de estabelecer metas para o resultado fiscal, isto é, a diferença entre o que o governo arrecada e o que de fato gasta. Mas o discurso de austeridade não resistiu ao primeiro teste da realidade. Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado, até o fim do atual mandato cerca de 150 bilhões de reais terão sido executados fora das regras da nova âncora. E o rombo segue aumentando: na segunda-feira 3, o Congresso, cúmplice no desmonte da responsabilidade fiscal, aprovou a retirada de mais 30 bilhões de reais em gastos com Defesa da contabilidade oficial até 2031. O texto, que agora depende apenas da sanção de Lula, transforma de vez em letra morta o instrumento criado para conter a deterioração das contas.

A meta fiscal, que deveria orientar a política econômica e servir de bússola para o equilíbrio do caixa do país, perdeu o sentido diante da sucessão de exceções e remendos. O Planalto parece ter se acostumado a tratar as normas que criou como peças de ficção. “O governo descumpre as regras o tempo todo”, afirma o economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper e ex-assessor especial do Ministério da Fazenda. “As despesas tiradas das regras são despesas de qualquer jeito e fazem a dívida pública crescer da mesma forma.” Desde que o presidente Lula voltou ao poder, em janeiro de 2023, a dívida bruta do país saltou de 71% para 78% do PIB. A Instituição Fiscal Independente projeta que o encargo pode alcançar 125% do PIB no prazo de uma década, caso nenhuma medida concreta seja adotada para conter o crescente desequilíbrio.

A regra fiscal já não cumpre sua função mais elementar: conter o avanço da dívida pública. No mercado financeiro, essa constatação virou consenso. “A cada ano aumenta o número de despesas fora do arcabouço, e o resultado é que ele não serve para mais nada”, diz Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da gestora ARX Investimentos. O descontrole tem efeito em cadeia. Com a dívida em trajetória explosiva, cresce a desconfiança dos investidores — justamente aqueles que financiam o governo ao comprar seus títulos. O reflexo é direto: o Banco Central se vê impossibilitado de reduzir a taxa básica de juros, juros. Hoje ela está em 15% ao ano, e foi mantida mais uma vez nesse nível pela diretoria do BC, na quarta-feira 5. “O investidor percebe que não há perspectiva de estabilização da dívida e exige um prêmio de risco maior”, diz João Leme, economista da Tendências Consultoria.

A manobra recente do Congresso para excluir bilhões de reais em gastos com Defesa do arcabouço fiscal é apenas mais uma rachadura naquilo que deveria ser a pedra fundamental da contabilidade pública. No fim de outubro, o mesmo Parlamento já havia autorizado o governo a perseguir o piso, e não o centro, da meta fiscal. O compromisso oficial para 2025 era de déficit zero, com margem de tolerância de até 0,25% do PIB. Na prática, a meta passa a ser o próprio rombo, estimado em 31 bilhões de reais. E ele só deve ser “cumprido” no papel porque outros 43 bilhões de reais estarão sendo gastos fora da conta oficial. O episódio envolvendo os gastos com Defesa reacendeu o alerta sobre a fragilidade do arcabouço. “Esse precedente indesejável aumenta o risco de novas excepcionalidades surgirem”, afirma Alexandre Andrade, diretor da IFI. O temor não é infundado. Já aprovado pela Câmara, tramita no Senado outro projeto de efeito igualmente corrosivo, que retira do alcance da regra fiscal as despesas com educação e saúde financiadas pelo Fundo Social do Pré-Sal — cerca de 1,5 bilhão de reais —, além dos gastos custeados por empréstimos internacionais.

O próximo presidente não terá apenas a tarefa de preservar a regra fiscal existente, mas de provar que ela ainda pode ficar de pé. Se nada for feito, o naufrágio das contas públicas será inevitável. A própria equipe econômica do governo Lula, chefiada por Haddad e Simone Tebet, ministra do Planejamento, reconhece encrenca no horizonte para 2027. O avanço dos gastos obrigatórios, impulsionado por pisos constitucionais e pela indexação de benefícios ao salário mínimo, ameaça estrangular o caixa destinado às despesas básicas. “Nenhuma regra vai funcionar se não mudarmos alguns dispositivos que pressionam o Orçamento”, diz Fabio Giambiagi, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas.

Os pisos constitucionais da saúde e da educação, somados à vinculação do salário mínimo, tornaram-se incompatíveis com os limites de gastos impostos pelo arcabouço fiscal. Mesmo tendo reconhecido, no início do ano, que faltarão cerca de 12 bilhões de reais para despesas discricionárias em 2027, o Ministério da Fazenda insiste em minimizar a gravidade do problema que ele próprio ajudou a criar. “Ainda há trabalho a ser feito no esforço de consolidação fiscal”, informou a pasta em nota a VEJA. E acrescentou: “O próximo mandato presidencial começará em 2027 com uma situação fiscal sólida”.

Até agora, o mercado ainda não precificou o risco de uma eventual paralisação de serviços públicos no próximo ciclo político por causa do desequilíbrio fiscal. Mas os analistas já voltam a atenção para a antessala do problema: o ano eleitoral de 2026. “Tudo indica que teremos uma expansão fiscal significativa”, afirma Felipe Tavares, economista-chefe da corretora BGC Liquidez. A nova proposta em discussão no governo para angariar popularidade é um programa de transporte público gratuito em todo o país. Independentemente do mérito, o que mais chama atenção é o custo da ideia: segundo a Confederação Nacional do Transporte, o impacto seria de 90 bilhões de reais por ano — quase três vezes o déficit máximo de 31 bilhões que o governo se esforça para conter em 2025. Não há espaço para acomodar tal despesa dentro do arcabouço fiscal, e a alternativa — romper novamente a regra — só aprofundaria o descrédito da política econômica. Resta ao governo encarar a realidade: sem uma reforma profunda do Orçamento e uma revisão séria dos gastos, o país continuará marchando rumo a um abismo financeiro.

VEJA

 


 

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