domingo, 31 de agosto de 2025

Zolpidem: Médicos explicam como tratar a dependência

 


Kayllani Lima Silva
Repórter

Nos últimos cinco anos, de acordo com dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 94,6 milhões de caixas de zolpidem foram vendidas no Brasil. O uso abusivo do medicamento, indicado para o tratamento da insônia de curta duração, pode causar dependência e camuflar a necessidade de tratar transtornos como ansiedade e depressão. Segundo especialistas, embora ainda não seja possível observar uma procura significativa pela interrupção do uso, a população tem se mostrado mais consciente dos riscos associados.

O levantamento da Anvisa, cedido à reportagem, aponta que, em 2020, foram comercializadas 18,3 milhões de caixas do medicamento no país. Já em 2024, o número caiu para 15,9 milhões, representando uma redução de 12,7% nos últimos cinco anos. Apesar disso, 2020 e 2021 registraram os maiores volumes de vendas desde 2011, início da série histórica, com 20,6 milhões e 21,9 milhões de caixas, respectivamente.

De acordo com o médico psiquiatra Ernane Pinheiro, presidente da Associação Norte-Rio-Grandense de Psiquiatria (ANP-RN), o vício no medicamento apresenta aspectos psicológicos e químicos. “Imagine uma pessoa que estava sem dormir e achava isso terrível. Quando ela começa a tomar um remédio e dorme muito bem, fica maravilhada. Então, primeiramente, já se estabelece logo uma dependência psicológica, pois ela acredita que se tomar o remédio vai dormir melhor”, explica.

Além do apego psicológico, o especialista ressalta que há também a dependência química, que pode se instalar no organismo em algumas semanas ou meses. Por isso, o medicamento deve ser usado apenas por curto período, já que o uso prolongado e em altas doses favorece a dependência biológica.

Entre os principais sinais de dependência está a síndrome de abstinência, marcada pelo sofrimento intenso do paciente após a interrupção do tratamento. Segundo o presidente da ANP-RN, o quadro inclui dores de cabeça fortes, irritabilidade, insônia, tristeza, ansiedade e depressão. Outro indicativo de dependência ocorre quando o paciente abandona os medicamentos voltados ao tratamento da causa da insônia, como a ansiedade, mas mantém o uso do zolpidem.

“Ou seja, ele faz de tudo pra manter a receita e a obtém por diversos meios, às vezes até clandestinos, mas não deixa de tomar esse remédio. Já os outros que não causam dependência, que são a maioria dos medicamentos prescritos pela psiquiatria, ele deixa”, completa.

Ernane Pinheiro alerta que, em diversos casos, o zolpidem costuma ser prescrito por clínicos gerais. Na avaliação dele, isso agrava o cenário, já que em muitas localidades os pacientes não têm contato direto com especialistas nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs). “As pessoas vão lá, falam com a enfermeira e dizem que o remédio é de uso contínuo. A enfermeira recebe, passa para o médico, que carimba e assina a prescrição para o paciente receber”, relata.

Embora o cenário seja preocupante, o presidente da ANP-RN afirma que tem observado em seu consultório uma maior procura por atendimento para interromper o uso do medicamento. Segundo ele, o processo deve ser gradual, para reduzir o sofrimento de quem já desenvolveu dependência. “Quando um paciente vai ao médico, é para resolver um problema. Então nós vamos tentar fazer de uma maneira mais agradável e menos sofrida. Naturalmente, pedimos que ele trate a doença que a origina e estabeleça uma retirada gradual do medicamento”, afirma.

Entre as alternativas, está a substituição do zolpidem por outro medicamento que não cause dependência. Já o médico psiquiatra Walter Barbalho Soares observa que, apesar de não haver aumento expressivo na busca pela redução do uso, a população tem se mostrado mais alerta aos riscos do consumo crônico.

Entre as consequências, ele destaca o mascaramento das causas da insônia, como transtornos de ansiedade, pânico e quadros depressivos. “Então o uso do zolpidem é perigoso porque o medicamento basicamente não trata nenhum desses quadros. Você mascara o sintoma colocando o paciente para dormir, pois é uma medicação hipnótica. Vai facilitar o início do sono, mas não vai ajudar no processo de tratar a causa da insônia”, completa o especialista.

O psicólogo Rodolpho Cortez, por sua vez, observa que ainda não há uma procura significativa pela interrupção do uso. Pelo contrário, a rotina acelerada da sociedade tem levado muitas pessoas a buscar recursos que induzam o sono. Ele alerta, contudo, que a tendência é de que os riscos das chamadas drogas “Z” se tornem cada vez mais conhecidos, a exemplo do que ocorreu com benzodiazepínicos como o Rivotril.

Tratamento com zolpidem e prescrição médica

O tempo necessário para o paciente superar a dependência do zolpidem varia, já que cada caso tem particularidades e histórico próprio. “Já tive pacientes que chegaram no meu consultório e tomavam 11 comprimidos por dia desse remédio, da maior dose. Então é claro que esse paciente tem muito mais do que a dependência. O paciente precisa ser visto como um todo”, explica Ernane Pinheiro.

Segundo ele, a dependência afeta, em sua maioria, pessoas com ansiedade e depressão. Casos de histórico familiar de vício ou de uso de substâncias como o álcool também aumentam o risco de dependência. O presidente da ANP-RN reforça que o tratamento com zolpidem deve ser de curta duração e indicado apenas quando o paciente não responde às primeiras alternativas para resolver a insônia.

O psiquiatra Walter Barbalho Soares reforça a necessidade de orientação especializada. “O uso precisa ser cauteloso e no menor tempo possível, [sendo necessário] sempre pesquisar a real causa da insônia. Além disso, é importante ressaltar que o processo de sono não é simples como apertar um botão e desligar para dormir. Existe todo um processo e uma rotina de sono que deve ser valorizada”, argumenta.

“Imagine que uma pessoa tinha depressão e eu resolvo tratá-la com um medicamento antidepressivo, por exemplo, a amitriptilina. Esse medicamento, além de tratar a depressão, trata o sono. Então, muitas vezes, eu prescrevo um medicamento como esse à noite e ele começa a dormir bem, embora a depressão ainda não tenha se resolvido. A depressão demora mais tempo para se resolver. Então, não necessariament”, afirma Ernane Pinheiro.

Ele ressalta que a amitriptilina tem a vantagem de não causar dependência. Já nos casos em que o zolpidem é indicado, o uso costuma se limitar a cerca de um mês, podendo variar conforme o perfil do paciente.

O psicólogo Rodolpho Cortez acrescenta que o uso abusivo do zolpidem pode comprometer funções cognitivas, prejudicar a memória e afetar a tomada de decisões. Há relatos, por exemplo, de pessoas que realizaram compras exorbitantes no cartão de crédito em decorrência da alteração de comportamento provocada pela substância.

Em maio deste ano, o aumento de relatos de uso irregular e abusivo do zolpidem levou a Anvisa a endurecer as regras para a prescrição do medicamento. A decisão foi tomada após análise que constatou crescimento no consumo da substância e mais registros de eventos adversos relacionados ao seu uso.

Com a medida, qualquer medicamento que contenha zolpidem passou a exigir Notificação de Receita B (azul) — a mesma utilizada para substâncias psicotrópicas de maior controle no Brasil. Esse tipo de receita só pode ser emitido por profissionais previamente cadastrados na vigilância sanitária local.

 

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