Kayllani Lima Silva
Repórter
Nos últimos cinco anos, de acordo com dados da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 94,6 milhões de caixas de
zolpidem foram vendidas no Brasil. O uso abusivo do medicamento, indicado para
o tratamento da insônia de curta duração, pode causar dependência e camuflar a
necessidade de tratar transtornos como ansiedade e depressão. Segundo
especialistas, embora ainda não seja possível observar uma procura
significativa pela interrupção do uso, a população tem se mostrado mais
consciente dos riscos associados.
O levantamento da Anvisa, cedido à reportagem,
aponta que, em 2020, foram comercializadas 18,3 milhões de caixas do
medicamento no país. Já em 2024, o número caiu para 15,9 milhões, representando
uma redução de 12,7% nos últimos cinco anos. Apesar disso, 2020 e 2021 registraram
os maiores volumes de vendas desde 2011, início da série histórica, com 20,6
milhões e 21,9 milhões de caixas, respectivamente.
De acordo com o médico psiquiatra Ernane Pinheiro,
presidente da Associação Norte-Rio-Grandense de Psiquiatria (ANP-RN), o vício
no medicamento apresenta aspectos psicológicos e químicos. “Imagine uma pessoa
que estava sem dormir e achava isso terrível. Quando ela começa a tomar um
remédio e dorme muito bem, fica maravilhada. Então, primeiramente, já se
estabelece logo uma dependência psicológica, pois ela acredita que se tomar o
remédio vai dormir melhor”, explica.
Além do apego psicológico, o especialista ressalta
que há também a dependência química, que pode se instalar no organismo em
algumas semanas ou meses. Por isso, o medicamento deve ser usado apenas por
curto período, já que o uso prolongado e em altas doses favorece a dependência
biológica.
Entre os principais sinais de dependência está a
síndrome de abstinência, marcada pelo sofrimento intenso do paciente após a interrupção
do tratamento. Segundo o presidente da ANP-RN, o quadro inclui dores de cabeça
fortes, irritabilidade, insônia, tristeza, ansiedade e depressão. Outro
indicativo de dependência ocorre quando o paciente abandona os medicamentos
voltados ao tratamento da causa da insônia, como a ansiedade, mas mantém o uso
do zolpidem.
“Ou seja, ele faz de tudo pra manter a receita e a
obtém por diversos meios, às vezes até clandestinos, mas não deixa de tomar
esse remédio. Já os outros que não causam dependência, que são a maioria dos
medicamentos prescritos pela psiquiatria, ele deixa”, completa.
Ernane Pinheiro alerta que, em diversos casos, o
zolpidem costuma ser prescrito por clínicos gerais. Na avaliação dele, isso
agrava o cenário, já que em muitas localidades os pacientes não têm contato
direto com especialistas nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs). “As pessoas vão
lá, falam com a enfermeira e dizem que o remédio é de uso contínuo. A
enfermeira recebe, passa para o médico, que carimba e assina a prescrição para
o paciente receber”, relata.
Embora o cenário seja preocupante, o presidente da
ANP-RN afirma que tem observado em seu consultório uma maior procura por
atendimento para interromper o uso do medicamento. Segundo ele, o processo deve
ser gradual, para reduzir o sofrimento de quem já desenvolveu dependência.
“Quando um paciente vai ao médico, é para resolver um problema. Então nós vamos
tentar fazer de uma maneira mais agradável e menos sofrida. Naturalmente,
pedimos que ele trate a doença que a origina e estabeleça uma retirada gradual
do medicamento”, afirma.
Entre as alternativas, está a substituição do
zolpidem por outro medicamento que não cause dependência. Já o médico
psiquiatra Walter Barbalho Soares observa que, apesar de não haver aumento
expressivo na busca pela redução do uso, a população tem se mostrado mais
alerta aos riscos do consumo crônico.
Entre as consequências, ele destaca o mascaramento
das causas da insônia, como transtornos de ansiedade, pânico e quadros
depressivos. “Então o uso do zolpidem é perigoso porque o medicamento
basicamente não trata nenhum desses quadros. Você mascara o sintoma colocando o
paciente para dormir, pois é uma medicação hipnótica. Vai facilitar o início do
sono, mas não vai ajudar no processo de tratar a causa da insônia”, completa o
especialista.
O psicólogo Rodolpho Cortez, por sua vez, observa
que ainda não há uma procura significativa pela interrupção do uso. Pelo
contrário, a rotina acelerada da sociedade tem levado muitas pessoas a buscar
recursos que induzam o sono. Ele alerta, contudo, que a tendência é de que os
riscos das chamadas drogas “Z” se tornem cada vez mais conhecidos, a exemplo do
que ocorreu com benzodiazepínicos como o Rivotril.
Tratamento com zolpidem e prescrição
médica
O tempo necessário para o paciente superar a
dependência do zolpidem varia, já que cada caso tem particularidades e
histórico próprio. “Já tive pacientes que chegaram no meu consultório e tomavam
11 comprimidos por dia desse remédio, da maior dose. Então é claro que esse paciente
tem muito mais do que a dependência. O paciente precisa ser visto como um
todo”, explica Ernane Pinheiro.
Segundo ele, a dependência afeta, em sua maioria,
pessoas com ansiedade e depressão. Casos de histórico familiar de vício ou de
uso de substâncias como o álcool também aumentam o risco de dependência. O
presidente da ANP-RN reforça que o tratamento com zolpidem deve ser de curta
duração e indicado apenas quando o paciente não responde às primeiras
alternativas para resolver a insônia.
O psiquiatra Walter Barbalho Soares reforça a
necessidade de orientação especializada. “O uso precisa ser cauteloso e no
menor tempo possível, [sendo necessário] sempre pesquisar a real causa da
insônia. Além disso, é importante ressaltar que o processo de sono não é
simples como apertar um botão e desligar para dormir. Existe todo um processo e
uma rotina de sono que deve ser valorizada”, argumenta.
“Imagine que uma pessoa tinha depressão e eu resolvo
tratá-la com um medicamento antidepressivo, por exemplo, a amitriptilina. Esse
medicamento, além de tratar a depressão, trata o sono. Então, muitas vezes, eu
prescrevo um medicamento como esse à noite e ele começa a dormir bem, embora a
depressão ainda não tenha se resolvido. A depressão demora mais tempo para se
resolver. Então, não necessariament”, afirma Ernane Pinheiro.
Ele ressalta que a amitriptilina tem a vantagem de
não causar dependência. Já nos casos em que o zolpidem é indicado, o uso
costuma se limitar a cerca de um mês, podendo variar conforme o perfil do
paciente.
O psicólogo Rodolpho Cortez acrescenta que o uso
abusivo do zolpidem pode comprometer funções cognitivas, prejudicar a memória e
afetar a tomada de decisões. Há relatos, por exemplo, de pessoas que realizaram
compras exorbitantes no cartão de crédito em decorrência da alteração de
comportamento provocada pela substância.
Em maio deste ano, o aumento de relatos de uso
irregular e abusivo do zolpidem levou a Anvisa a endurecer as regras para a
prescrição do medicamento. A decisão foi tomada após análise que constatou
crescimento no consumo da substância e mais registros de eventos adversos
relacionados ao seu uso.
Com a medida, qualquer medicamento que contenha
zolpidem passou a exigir Notificação de Receita B (azul) — a mesma utilizada
para substâncias psicotrópicas de maior controle no Brasil. Esse tipo de
receita só pode ser emitido por profissionais previamente cadastrados na vigilância
sanitária local.
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