sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Território do crime: Brasil tem 26% da população vivendo sob regras de facções, maior índice na América Latina

 


O Brasil é, com folga, o país da América Latina com o maior percentual da população vivendo sob as regras impostas por grupos criminosos. É o que revela um estudo elaborado por quatro pesquisadores de universidades americanas, publicado na última semana pela Cambridge University Press.

Os dados mostram que entre 50,6 e 61,6 milhões de brasileiros, cerca de 26% da população do país, estão submetidos à chamada governança criminal, o conjunto de regras impostas aos moradores por uma organização que controla aquele território.

As análises foram obtidas com base na edição de 2020 da pesquisa Latinobarómetro, levantamento realizado por uma organização chilena que faz anualmente pesquisas de opinião em 18 países da América Latina. Os pesquisadores estimam que entre 77 e 101 milhões de pessoas na região, ou 14% da população dessas nações, vivem sob governança criminal.

Depois do Brasil, o segundo colocado é a Costa Rica, com 13% da população submetida às regras das facções, seguida por Honduras (11%), Equador (11%), Colômbia (9%), El Salvador (9%), Panamá (9%) e México (9%). O conjunto de regras afeta todos os aspectos da vida de uma comunidade, das eleições ao acesso aos serviços públicos.

Em geral, a presença das facções pode causar desde uma diminuição nos índices de criminalidade até uma explosão nas taxas de homicídio. Os pesquisadores citam, por exemplo, a redução nas mortes violentas na cidade de São Paulo vista ao longo dos anos 2000.

Eles relacionam o fenômeno com a ascensão do Primeiro Comando da Capital (PCC), assim como acordos de paz firmados por grupos de outros países com os seus respectivos estados, que resultaram em uma redução nos homicídios, como o caso dos maras, as gangues de El Salvador, ou os combos de Medellín, na Colômbia.

O estudo também questiona o senso comum de que as facções se proliferam apenas em áreas em que há ausência do Estado. Os pesquisadores apontam que o mais provável é que ocorra o oposto.

— Se você olhar o Brasil, as facções são muito fortes, e o país tem um Estado forte comparado a outros lugares. E onde surgiram as facções? No Rio e em São Paulo. A facção mais forte (o Primeiro Comando da Capital, o PCC) nasceu em São Paulo, o estado mais rico da União — diz Benjamin Lessing, professor de ciência política da Universidade de Chicago.

Lessing levanta a hipótese de que a força da repressão estatal pode ser o catalisador da expansão da governança criminal de uma facção. Ele cita, por exemplo, os altos níveis de encarceramento, a repressão ao tráfico de drogas e operações policiais dentro de territórios controlados por facções como fatores que, paradoxalmente, acabam fortalecendo o crime.

— Quanto mais existe a ameaça da polícia entrar e apreender drogas, mais a facção tem incentivo para governar (um território). Acho que é consistente a ideia de que a repressão estatal é o motor da governança criminal — diz o pesquisador.

Os pesquisadores ponderam no artigo que os resultados obtidos têm “limitações significativas”, mesmo após exercícios de validação e delimitação de erros. Os dados, segundo eles, são mais propensos a subestimar do que a superestimar a verdadeira prevalência da governança criminal.

Isso porque a pesquisa Latinobarómetro, além de questionar apenas sobre algumas atividades centrais de governança, tem dificuldade de obter acesso de recenseadores a áreas com forte controle de gangues.

— Se você perguntar se aquele local tem muito crime, as pessoas vão dizer que sim. Muitas vezes, a taxa de vitimização é superestimada, por exemplo. Agora, se perguntar se o crime controla e coloca ordem, não é tão comum a pessoa achar que o crime está melhorando a segurança quando não está. É mais difícil ter um falso positivo com uma pergunta dessas — afirma Lessing.

O motorista de Uber José*, morador do bairro Jorge Teixeira, na Zona Leste de Manaus, conta como é viver sob as regras impostas por uma organização criminosa. Desde que a facção fluminense Comando Vermelho (CV) alcançou a hegemonia no estado de Amazonas, sua comunidade, segundo ele, reduziu o volume de brigas, roubos e violência doméstica. Dois vizinhos dele, diz, foram expulsos de suas casas pelo CV depois de baterem em suas mulheres.

— Um foi para o interior; outro nem sei onde está. Esse pessoal (integrantes do CV) não quer que a polícia chegue na comunidade — opina.

Brasil tem 64 facções criminosas

Levantamento publicado por O GLOBO em 10 de agosto mostrou que o Brasil conta com 64 facções espalhadas por 27 unidades da federação. Os dados foram coletados junto a fontes das secretarias de Segurança Pública, Administração Penitenciária e Ministérios Públicos de todos os estados.

Entre os grupos mencionados pelas autoridades, 12 têm presença em mais de um estado, e os outros 52 são, até onde se sabe, organizações locais. Há duas delas, contudo, com presença efetivamente nacional. O PCC está em 25 unidades da federação, enquanto os fluminenses do Comando Vermelho (CV) se encontram em 26. Os grupos só não estão, ainda, no Rio Grande do Sul. O crime gaúcho gerou suas próprias facções interestaduais: Bala na Cara (BNC) e Os Manos.

Bahia (17), Pernambuco (12) e Mato Grosso do Sul (10) são os estados que mais concentram grupos criminosos. Enquanto os dois do Nordeste têm um cenário fragmentado, com muitas facções locais disputando espaço, o território sul-mato-grossense é o maior “importador” de facções de outros estados. A rota do narcotráfico que passa pela fronteira com o Paraguai e a Bolívia estimulou nove das 12 facções interestaduais a criarem núcleos de atuação ali.

Apesar de o PCC já ter presença internacional, as autoridades brasileiras quase não encontram núcleos grandes de facções estrangeiras no país. A única exceção é no estado de Roraima, onde o grupo venezuelano Tren de Aragua possui membros. O estado que mais “exporta” facções nacionalmente é o Rio de Janeiro, que além do CV tem duas organizações com atuação interestadual: o Terceiro Comando Puro (TCP) e os Amigos dos Amigos (ADA).

É difícil dizer se o número de facções está diminuindo ou crescendo no país, sobretudo quando se trata dos grupos menores, porque não há critério oficial para diferenciar uma facção criminosa de uma gangue com atuação circunstancial.

O Globo

 

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