Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco
Aurélio Mello avalia que o STF vive um momento de “extravagância” com “enorme”
desgaste para a instituição. Para ele, as decisões do ministro Alexandre de
Moraes são incompreensíveis ao estado democrático de direito e serão cobradas
pela história.
Marco Aurélio continua: para compreender o que está
por trás das decisões de Moraes, seria necessário levá-lo ao psicanalista.
“Eu teria que colocá-lo em um divã e fazer uma
análise talvez mediante um ato maior, e uma análise do que ele pensa, o que
está por trás de tudo isso. O que eu digo é que essa atuação alargada do
Supremo, e uma atuação tão incisiva, implica desgaste para a instituição. A
história cobrará esses atos praticados. Ele (Moraes) proibiu, por exemplo,
diálogos. Mordaça, censura prévia, em pleno século que estamos vivendo. É
incompreensível”, disse em entrevista exclusiva à Coluna do Estadão.
Mello considera que a investigação sobre Jair
Bolsonaro já começou de maneira errada e não deveria estar na Suprema Corte.
Ele lembra, por exemplo, que, quando era ex-presidente, Luiz Inácio Lula da
Silva respondeu na primeira instância. “Estive 31 anos na bancada do Supremo e
nunca julgamos em turma processo crime. Alguma coisa está errada”, prosseguiu.
Na visão do ex-ministro, Bolsonaro está sendo submetido
a humilhação, com o uso da tornozeleira eletrônica, e sendo tratado “como se
fosse um bandido de periculosidade maior”. Ele ressaltou que, se estivesse na
Corte, acompanharia a divergência do ministro Luiz Fux, e lamentou que os
magistrados estejam agindo por “espírito de corpo” ao apoiarem os atos de
Moraes.
Nesta entrevista, Marco Aurélio Mello também faz um
apelo por correção de rumos no STF. “Que haja uma evolução, e que o Supremo
atue, não como órgão individual como vem atuando na voz do ministro Alexandre
de Moraes, mas como órgão coletivo, e percebendo a repercussão dos atos que
pratica. Aí nós avançaremos culturalmente”.
O ministro Alexandre de Moraes impôs restrições ao
ex-presidente Jair Bolsonaro, em decisões publicadas na sexta-feira passada e
nessa segunda. O que o sr. considera que está certo e o que excede?
O que começa errado não pode acabar bem. Começou
errado, considerando a competência do Supremo, que está na Constituição. E o
preceito é exaustivo. Supremo não é competente para julgar cidadão comum, para
julgar originariamente ex-presidente da República, ex-deputado federal ou
ex-senador. Basta que indaguemos: o atual presidente (Luiz Inácio Lula da
Silva), quando respondeu criminalmente, ele o fez onde? Na 13ª Vara Criminal de
Curitiba. A legislação não mudou. Por que o ex-presidente Bolsonaro está a
responder no Supremo? Isso é inexplicável, e a história em si é impiedosa, vai
cobrar essa postura do Supremo. Quando o Supremo decide, não cabe recurso a um
órgão revisor. Então, o devido processo legal fica prejudicado. Não se avança
culturalmente assim, maltratando a lei das leis que é a Constituição Federal.
Agora, o momento é de temperança, é de buscar-se a correção de rumos sem
atropelos, principalmente sem partir-se para uma censura prévia. Isso é
incompreensível ao estado democrático de direito.
Em quais pontos da decisão de Moraes o sr. vê
censura?
Quando ele proíbe participação em rede social.
Quando ele proíbe, e aí passa a apenar o cidadão, proíbe que mantenha um
diálogo com terceiros. E impõe, pior do que isso, impõe a um ex-presidente da
República, algo que é humilhante, que é o uso de tornozeleira. Pra quê? Qual é
o receio, de ele fugir? Não pode haver esse receio. Em direito penal o meio
justifica o fim, jamais o fim ao meio, sob pena de termos aí a batel um
contexto que não se mostrará harmônico com a Constituição Federal. Inclusive
tenho lido o noticiário, e ele (Moraes) não defendeu bem o alcance dessa
censura prévia. Censura. Considerados os ares democráticos da Constituição de
1988 é inimaginável. Qual é a medula do Estado? É a liberdade de expressão. Eu
não vejo com bons olhos e fico muito triste porque o desgaste do Supremo, o
desgaste institucional é enorme.
O Supremo caminha para onde neste momento?
Não sei. Basta considerar que houve uma emenda
regimental deslocando a competência do plenário para as turmas, em processo
crime. Estive 31 anos na bancada do Supremo e nunca julgamos em turma processo
crime. Alguma coisa está errada. Eu espero que não se chegue a julgar processo
crime individualmente, monocraticamente.
O que o sr. acha que está movendo e embasando as
decisões de Moraes?
Eu teria que colocá-lo em um divã e fazer uma
análise talvez mediante um ato maior, e uma análise do que ele pensa, o que
está por trás de tudo isso. O que eu digo é que essa atuação alargada do
Supremo, e uma atuação tão incisiva, implica desgaste para a instituição.
As condições impostas ao ex-presidente Jair
Bolsonaro são comparáveis a de um preso condenado?
Um preso condenado, com sentença não mais sujeita a
impugnação, ele cumpre a pena. É preciso observar se essas medidas alcançam a
dignidade da própria pessoa. O uso de tornozeleira. A proibição de sair de
casa, que é praticamente uma prisão domiciliar. Vamos observar a ordem natural,
que é apurar para, selada a culpa no processo crime, exercido o direito de
defesa, chegar-se à execução do pronunciamento judicial definitivo. E não há
esse pronunciamento, por enquanto. O ministro Luiz Fux divergiu e, se lá eu
estivesse, eu o acompanharia. Divergiu quanto à utilização (de tornozeleira
eletrônica), por um ex-presidente da República. Vamos respeitar a instituição
que é a Presidência da República. Utilizar como se fosse um bandido de
periculosidade maior. A tornozeleira é uma apenação humilhante, porque alcança
a dignidade da pessoa.
Por que o sr. acredita, então, que os ministros têm
acompanhado na turma, em maioria, as decisões de Moraes?
É um espírito de corpo que não deveria haver. Quando
formei no colegiado, me manifestava espontaneamente, segundo meu convencimento,
não me importando em somar voto. Não há campo para solidariedade no órgão
julgador. Cada integrante deve atuar com absoluta independência. Evidentemente
acompanhando o colega no que se convencer do acerto da proposição desse colega.
O sr. vê alguma perspectiva de mudança no
comportamento da Corte, a partir da mudança na presidência do STF, em setembro?
O presidente é um coordenador dos trabalhos. Ele não
é um superior hierárquico. E cada qual é que tem que compreender a envergadura
da cadeira e a importância dos atos que pratique. E buscar praticar atos
afinados com a legislação, com o arcabouço normativo. Eu repito: o Supremo hoje
está na vitrine e é alvo de imensas críticas. Eu, por exemplo, saio, as pessoas
me reconhecem nas ruas. Eu nunca fui hostilizado como juiz. E reclamam do
Supremo. Isso é péssimo. O Supremo é a última trincheira da cidadania e deve
agir dando exemplo, portanto, aos demais órgãos do Judiciário.
O sr. avaliaria, então, que falta alguma postura
mais firme do atual presidente da Corte?
Não, porque fica muito difícil para o ministro
presidente impor certa ótica. O que cabe a ele, no máximo, é fazer uma
ponderação. Uma ponderação no sentido da correção de rumos.
E como ele poderia fazer isso?
Conversando. Num diálogo aberto, ainda que
reservado, com o próprio ministro que está a atuar (Alexandre de Moraes). E ele
ficou como relator de todos os casos que tenham alguma ligação com aquele
inquérito inicial, que eu rotulei como inquérito do fim do mundo (inquérito das
fake news), tudo vai para ele, e isso não é bom. Quando se deixa de observar o
critério democrático da distribuição.
O sr. vê nas decisões de Moraes alguma tentativa de
banimento da imagem de Bolsonaro?
Eu não posso. Por que banimento? Agora mesmo se
potencializou muito a fala do presidente (Donald) Trump. Uma fala como
governante, que não visou proteger a família Bolsonaro. A família Bolsonaro não
tem junto à Presidência dos Estados Unidos esse prestígio todo. A ponto de o
próprio governo interferir ou tentar interferir numa atuação do País irmão.
Isso aí é algo ingênuo e precisamos parar para observar qual é a origem em si
dessa atuação do presidente Trump.
Uma das reclamações dos apoiadores de Bolsonaro é o
fato de ele não poder dar entrevista, usar as redes e porque há extensão dessas
medidas cautelares para terceiros, deixando dúvidas até se é permitido usar
entrevistas antigas de Bolsonaro.
Eu só espero que essa postura não acabe intimidando
a grande imprensa. E gere um cerceio e gere consequências inimagináveis. Não se
coaduna com o estado democrático de direito o que vem ocorrendo. Nós não
tivemos isso sequer quando vivenciamos o regime de exceção, que foi o regime
militar.
Se não se viveu isso nem no estado de exceção, o sr.
classificaria o atual estado como o quê?
Eu vejo como uma extravagância que vem se
verificando no âmbito da Corte maior do País que é o Supremo. E é preciso que
volte a Corte a atuar como colegiado e, preferencialmente, no plenário, com as
11 cadeiras ocupadas. E que cada qual se pronuncie com absoluta independência.
Isso é o que se espera.
O sr. já disse que para entender as decisões de
Moraes precisaria levá-lo ao divã. O sr. percebe algum impacto emocional das decisões
do ministro, já que ele é um dos principais alvos dos bolsonaristas?
Eu não queria estar na pele do ministro Alexandre de
Moraes. Ele não consegue sair, estar num lugar público, a não ser com
contingente de seguranças. Quando isso se verifica, algo está errado. E cumpre
àquele que é alvo da hostilização da sociedade observar os atos praticados se
evoluir. E vou repetir: resulta no prejuízo da instituição e, mais à frente, a
história cobrará esses atos praticados. Ele (Moraes) proibiu, por exemplo, diálogos.
Mordaça, censura prévia, em pleno século que estamos vivendo. É
incompreensível.
O sr. quer complementar algo?
Que haja uma evolução, e que o Supremo atue, não
como órgão individual como vem atuando na voz do ministro Alexandre de Moraes,
mas como órgão coletivo, e percebendo a repercussão dos atos que pratica. Aí
nós avançaremos culturalmente.
Estadão
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