No início deste ano, uma professora paulistana de 61
anos que convive com a obesidade desde a infância e teve sua trajetória marcada
por dietas, remédios e preconceito foi apresentada a um “protocolo de
emagrecimento” oferecido pela clínica do mesmo médico que a acompanhou durante
o tratamento de um câncer.
O pacote, sedutor, incluía suporte
multiprofissional, desde nutricionistas a psicólogos, e aplicações semanais do
medicamento Mounjaro pelo preço de 18 000 reais, parcelados em doze vezes, com
a promessa de eliminar até 20% do peso em dezesseis semanas. Os primeiros dias
do plano pareciam animadores.
Até que a professora, que pediu anonimato em
entrevista a VEJA, começou a se incomodar com os atendimentos rápidos e
superficiais. A grande surpresa veio quando, após ouvir o alerta de um colega,
observou que o remédio injetado nas consultas não era o mesmo das canetas
oficiais, fabricadas pelo laboratório Eli Lilly. Vinha de ampolas, como
vacinas. “Pedi para olhar o frasco de perto e, em vez da marca conhecida,
encontrei o nome de uma farmácia de manipulação”, diz.
Casos como o da educadora de São Paulo tornaram-se
cada vez mais comuns pelo país. O mercado de manipulados dos análogos de GLP-1
— classe que inclui Mounjaro, Ozempic e Wegovy — cresce de forma explosiva no
Brasil. Dados da Receita Federal mostram que, entre 2023 e 2025, foram
importados mais de 30 quilos de semaglutida (base do Ozempic) e quase 22 quilos
de tirzepatida (Mounjaro). O volume seria suficiente para manipular 6 milhões
de doses de semaglutida e 4,4 milhões de tirzepatida, já que uma única ampola
de 60 mg, fracionada em doze aplicações de 5 mg, é a dose comum nos “protocolos
de emagrecimento”. Embora a Anvisa aponte países como os Estados Unidos entre
as principais fontes dos insumos, os registros da Receita indicam outra
realidade: quase 80% vêm da China e da Índia.
Um dos principais atrativos das versões manipuladas
é o preço. A promessa da tal “experiência completa” cria a sensação de um
investimento mais econômico, embora, na prática, o custo do pacote inteiro
muitas vezes supere o das canetas originais. Nessa dinâmica, a venda geralmente
é feita pelas clínicas, enquanto a produção fica a cargo das farmácias. E aí
reside o problema. Como alerta uma nova campanha da Sociedade Brasileira de
Endocrinologia e Metabologia (Sbem), tais estabelecimentos não têm estrutura
adequada para lidar com moléculas tão complexas nem o controle de qualidade e
segurança das grandes farmacêuticas que desenvolveram tais produtos.
Análises revelam que os manipulados não só vêm em
dosagens não estudadas, como podem apresentar contaminação e impurezas, expondo
pacientes a inúmeros perigos. A questão é que, no conluio de clínicas, médicos
e farmácias, enquanto a ética é deixada de lado, sobra lucro para as partes
envolvidas. Tanto é que bombam na internet propagandas dos tais “protocolos”,
inclusive para fins estéticos e imediatos, como a promessa de ficar “sarado
para o Carnaval”. “Estamos diante de um mercado lucrativo e marcado por outras
práticas sem respaldo científico, como a prescrição de chip da beleza e
soroterapia”, diz o endocrinologista Clayton Macedo, diretor da Sbem.
Depois das críticas dos especialistas, a Anvisa
publicou uma nota técnica no último dia 22 que soou como um golpe contra essa
prática. O documento proíbe a manipulação da semaglutida e libera sua
importação apenas pelo fabricante, a Novo Nordisk, justamente por se tratar de
medicação biológica de alta complexidade. A tirzepatida, contudo, ficou de
fora, despertando severas críticas, porque se tornou a bola da vez nesse meio.
É nesse cenário que irrompeu a campanha “Obesidade: tratamento adequado não se
manipula”, da Sbem, que defende o mesmo rigor com a substância do Mounjaro.
Em meio ao debate, Antônio Geraldo Ribeiro,
coordenador do grupo técnico magistral do Conselho Federal de Farmácia (CFF),
acredita que a manifestação da Anvisa represente um avanço por consolidar
normas já existentes, mas que precisavam ser colocadas à mesa. “Ela reuniu
legislações que vão da importação à manipulação e deixou claro quais testes
devem ser realizados por importadores e farmácias”, afirma. Esses testes,
entretanto, não são feitos pela agência reguladora, mas pelas próprias empresas
ou por laboratórios terceirizados, o que não elimina a possibilidade de falhas
ou desvios. “É preciso um compromisso de mão dupla”, diz Ribeiro.
Não se trata de coibir o papel das farmácias de
manipulação, que criam soluções individualizadas, e não produzidas em escala
industrial, a fim de atender às mais diversas necessidades. Mas de botar ordem
em um setor crivado de brechas regulatórias e que, no caso das canetas
emagrecedoras, muito além da discussão em cima da proteção às patentes, envolve
a ganância de profissionais que negligenciam a ciência e o cuidado para vender
um sonho que pode virar pesadelo a seus pacientes.
VEJA
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