No dia 2 de setembro, o Supremo Tribunal Federal
(STF) começa a julgar Jair Bolsonaro (PL) e outros sete réus acusados de
comandar o núcleo central de um plano para impedir a posse do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT).
Ao longo do caminho, o ministro Alexandre de Moraes
acumulou uma série de críticas pela forma como conduziu o processo. Mesmo
assim, criminalistas consultados pelo Estadão afirmam que as provas reunidas
sustentam a acusação de que Bolsonaro articulou uma tentativa de golpe. Para
eles, a condenação é certa — a dúvida, agora, está no tamanho da pena que será
aplicada ao ex-presidente.
Cinco especialistas fizeram, a pedido da reportagem
do Estadão, uma avaliação da condução do processo no Supremo: Maíra Beauchamp
Salomi, vice-presidente da Comissão de Estudos de Direito Penal do Instituto
dos Advogados de São Paulo; Marcelo Crespo, professor e coordenador do curso de
Direito da ESPM; Renato Vieira, ex-presidente do Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais (IBCCRIM); Welington Arruda, mestre em Direito pelo IDP; e
Priscila Pamela Santos. Em conjunto, as entrevistas indicam ao menos sete
pontos controversos na ação penal. Veja quais são:
Competência do STF para julgar Bolsonaro
Um dos pontos mais discutidos é se caberia ou não ao
Supremo julgar Bolsonaro. Advogados citam que, quando a ação penal contra o
ex-presidente foi aberta, prevalecia o entendimento de que antigos ocupantes do
Palácio do Planalto deveriam responder na primeira instância da Justiça, como
cidadãos comuns.
“Em abril, no julgamento do Habeas Corpus 232627, o
STF mudou seu entendimento e decidiu que crimes cometidos por autoridades no
exercício do mandato podem continuar sendo julgados pela Corte mesmo depois que
elas deixam o cargo. Essa alteração, porém, aconteceu depois que a ação penal
contra Bolsonaro já havia sido oferecida”, explica Maíra Beauchamp Salomi.
Ela defende que o STF não seria o foro adequado para
o caso. Embora o tema esteja pacificado, a criminalista cita o exemplo do
presidente Lula, cujo processo começou na primeira instância, em Curitiba, sob
o comando do então juiz Sérgio Moro.
O criminalista Welington Arruda concorda. Para ele,
o Supremo atraiu a ação sob duas justificativas frágeis: a suposta “conexão” de
Bolsonaro com outros réus parlamentares, que possuem foro, e o fato de os
crimes investigados terem como alvo o próprio Supremo.
“Essa interpretação pode alongar demais a ideia de
conexão e esvaziar a garantia do juiz natural, que é o princípio de que cada
caso será julgado por um magistrado cuja competência está prévia e
impessoalmente definida em lei, antes do fato e do réu. É uma trava de
imparcialidade que afasta tribunais de exceção, escolhas de juiz para o caso e
conexões artificiais usadas para concentrar processos sem limite probatório
concreto”, afirma Arruda.
Acúmulo de funções x
imparcialidade: concentração de etapas nas mãos do mesmo relator
“O STF concentrou etapas que, no desenho original,
seriam separadas. O mesmo relator que, em 8 de fevereiro de 2024, determinou —
a pedido da Polícia Federal e com parecer da Procuradoria-Geral da República
(PGR) — buscas e apreensões, quebras de sigilo e a apreensão do passaporte do
ex-presidente, além de decretar a prisão preventiva de assessores próximos,
depois manteve essas cautelares, levantou o sigilo do inquérito e remeteu o
relatório da PF à PGR. Agora, é a própria Corte que julgará o mérito. Quando
quem autoriza as medidas investigativas e as cautelares também julga, surge uma
dúvida legítima sobre imparcialidade e separação de funções. Esse é o ponto”,
critica Arruda.
Marcelo Crespo lembra que o problema começou em
2019, quando o então presidente do STF, Dias Toffoli, nomeou Moraes relator do
inquérito das fake news. “No processo penal, a regra é que a escolha do relator
seja feita por sorteio. Só há exceção quando já existe um caso semelhante e o
mesmo ministro assume também o novo processo, para evitar decisões distintas”,
explica Crespo.
Desde então, Moraes acumulou a relatoria de
investigações sensíveis, ferindo o princípio do juiz natural. “Em determinado
momento, houve uma confusão de papéis: ele era magistrado, atuava como órgão
investigador e também figurava como vítima. No processo penal, quem julga não
deve investigar, e quem investiga não deve julgar. E, se é vítima, não pode
participar da investigação.”
O coordenador da ESPM, porém, pondera que a
atipicidade dos fatos torna natural que as decisões despertem questionamentos.
“É importante lembrar que praticamente todas as decisões dele foram
referendadas pelos demais ministros. Não são decisões individuais, são do
Supremo”, diz.
Julgamento pela Primeira Turma e
enquadramento penal
Outro debate é o fato de Bolsonaro ser julgado pela
Primeira Turma do STF, que tem cinco ministros. As turmas costumam analisar
recursos vindos de instâncias inferiores e casos menos complexos. Votações de
maior relevância, em regra, são analisadas pelo Plenário, formado pelos 11
ministros.
“Esse caso merece ser analisado pelo Plenário porque
envolve crime supostamente cometido por um presidente da República — que, pelo
regimento, deve ser julgado pelo colegiado — e porque trata de tipos penais
novos, criados em 2021: golpe de Estado e abolição violenta do Estado
Democrático de Direito”, afirma Renato Vieira, sócio do Kehdi Vieira Advogados.
“Estamos falando de crimes centrais para a sobrevivência da democracia. Faz
sentido julgá-los com apenas cinco ministros?”, questiona.
Crespo diverge. “Você tem, recentemente,
jurisprudência do STF dizendo que esse caso poderia ser julgado pela turma, e
não pelo plenário. Idealmente, ao julgar um presidente da República, seria mais
adequado levar ao pleno. Mas, se a própria jurisprudência do Tribunal admite
que seja feito pela turma, não há nenhum absurdo nessa decisão.”
Arruda, por sua vez, aponta ainda possível
sobreposição de tipos penais ao somar as penas de abolição violenta do Estado
Democrático de Direito e golpe de Estado. “Há quem defenda a absorção de um
crime pelo outro”, observa.
Cerceamento da defesa
“A decisão de fazer a seletividade de eleitores no
contexto da eleição dizia respeito diretamente a Bolsonaro, e ele não pôde
influenciar a colheita da prova nesse núcleo.” Vieira também critica a falta de
prazo das defesas para análise de documentos: “Houve um evento em que o
documento foi juntado um dia antes da audiência”.
Delação premiada de Mauro Cid
O ponto mais grave na condução de Moraes, na opinião
de Vieira, ocorreu na delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid. Para ele, o
ministro desrespeitou a lei ao conduzir pessoalmente todas as perguntas na
audiência de 19 de novembro de 2024.
“Dias antes daquela audiência, o ministro havia
recebido um ofício com as possíveis omissões de Cid e fez todas as perguntas de
mérito — aquelas que, na avaliação dele, chegariam à verdade. Aquele momento
significou, para mim, o rompimento, por parte do ministro Alexandre de Moraes,
da observância da lei de delação premiada, que prevê que o juiz deve apenas
verificar a voluntariedade e as condições do acordo e não, em hipótese alguma,
entrar no mérito das informações prestadas.”
Para Vieira, esse fato é relevante porque foi nessa
audiência que vieram à tona as informações sobre o plano Punhal Verde e
Amarelo, que previa o assassinato de Lula. Com isso, diz o criminalista, houve
um vício na colheita das declarações do delator.
O ex-presidente do IBCCRIM avalia que, embora Moraes
tenha ultrapassado os cuidados exigidos para preservar sua imparcialidade em
alguns momentos, é difícil afastar a conclusão de que houve, de fato, uma
tentativa de golpe de Estado.
Apreensão dos celulares de advogados
A advogada criminalista Priscila Pamela Santos
destaca que as críticas a Moraes não se limitam ao processo de Bolsonaro, mas
refletem reivindicações antigas da advocacia em várias instâncias. “O que se vê
hoje são muitos garantistas de ocasião”, avalia. Para ela, de modo geral,
Moraes atuou dentro dos padrões do Judiciário. O caso, ressalta, é complexo,
envolve crimes graves e uma situação totalmente atípica.
“A atuação da Corte em defesa da Democracia foi
essencial para estarmos hoje aqui falando sobre o assunto. Mas mesmo diante
desse contexto, uma decisão em particular considero controversa: a apreensão
dos celulares de advogados. Acho problemática a decisão porque pode resvalar no
exercício do direito de defesa, que é um pilar da democracia”, afirma.
Prisão domiciliar de Bolsonaro
Outro ponto questionado foi a decretação da prisão
domiciliar de Bolsonaro. Moraes justificou a medida afirmando que o
ex-presidente descumpriu cautelares ao aparecer nas redes sociais dos filhos.
Maíra Beauchamp Salomi, doutoranda em Direito Penal da USP, contesta a decisão
e diz que Moraes não conseguiu provar que Bolsonaro tinha ciência ou determinou
a publicação desses vídeos, como sugere em sua decisão ao tratar o material
divulgado como “pré-fabricado”.
Na avaliação dela, além de não comprovar a violação,
Moraes impôs a prisão domiciliar sem apresentar justificativa. Pelo Código de
Processo Penal, explica a criminalista, essa medida só pode ser aplicada em
casos específicos — como substituição da prisão preventiva ou definitiva quando
o réu é idoso, doente, gestante ou responsável por filhos menores.
“Se Moraes entendeu que houve descumprimento das
medidas cautelares, o adequado seria decretar a prisão preventiva. Caberia
então à defesa demonstrar que Bolsonaro se enquadra em alguma das hipóteses do
artigo 317 do Código de Processo Penal para converter a preventiva em prisão
domiciliar”, explica.
Estadão Conteúdo
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