O comércio varejista do Rio Grande do Norte deixou
de faturar até R$ 3,2 bilhões em 2024 devido ao impacto das apostas online,
segundo estudo divulgado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens,
Serviços e Turismo (CNC). O estudo mostra que as apostas esportivas geraram uma
perda total de até R$ 103 bilhões no varejo nacional, com dois cenários
simulados: um mais conservador, de R$ 24 bilhões, e outro extremo, de R$ 240
bilhões. No cenário mais conservador, o valor que o RN deixou de movimentar foi
de R$ 301 milhões. Já no cenário mais pessimista o impacto pode chegar a R$ 3,2
bilhões.
De acordo com Felipe Tavares, economista-chefe da
CNC, o cálculo do impacto financeiro foi realizado a partir de um modelo
matemático e estatístico. “Analisamos variáveis como renda das famílias,
crédito e crescimento econômico para determinar o potencial do varejo. Em
seguida, comparamos esses dados com os números reais e identificamos um desvio,
o que nos levou a concluir que o setor foi impactado pelas apostas online”,
explica Tavares.
Além disso, o estudo utilizou informações do Banco
Central, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e de
instituições financeiras como Santander e Itaú para estabelecer os extremos do
cenário econômico.
No Rio Grande do Norte, os efeitos das apostas
online foram sentidos de forma intensa, especialmente entre as famílias de
baixa renda. Dados da pesquisa mostram que, entre novembro de 2023 e novembro
de 2024, o percentual de famílias com renda entre 3 e 5 salários mínimos que
possuíam contas em atraso subiu de 26% para 29%. Em contrapartida, o grupo com
renda entre 5 e 10 salários mínimos apresentou redução na inadimplência,
indicando maior vulnerabilidade das classes mais baixas.
Helder Cavalcanti, economista e ex-presidente do
Conselho Regional de Economia (Corecon-RN), destacou que esse cenário reflete
diretamente no poder de consumo da população. “As famílias de baixa renda já
enfrentam dificuldades para equilibrar as despesas. O comprometimento de parte
da renda com apostas online as leva a deixar de pagar contas essenciais, como
energia e água, o que impacta negativamente o comércio local”, afirma.
O setor de alimentos foi especialmente atingido,
segundo Geraldo Paiva, presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Gêneros
Alimentícios do Rio Grande do Norte (SINCOVAGA). Ele relatou que famílias
chegaram a destinar até 40% de seus orçamentos às apostas, deixando de adquirir
itens básicos. “Esse comportamento não prejudica apenas as famílias, mas também
os pequenos comerciantes, que dependem desse consumo para se manterem ativos no
mercado”, afirma.
Além disso, Geraldo Paiva destacou o impacto social
das apostas. “Muitos trabalhadores utilizam benefícios sociais, como o Bolsa
Família, para jogar, gerando um ciclo de dívidas que desestrutura não só a
economia, mas também as famílias. Temos relatos de funcionários pedindo
adiantamentos ou abandonando seus empregos devido ao endividamento causado
pelas bets”, completa.
Se as apostas online não existissem, o comércio
varejista do Rio Grande do Norte poderia registrar um crescimento de até 15%,
segundo Geraldo Paiva. “O dinheiro que hoje é gasto em apostas seria
redirecionado para bens e serviços essenciais, como alimentos, vestuário e
reforma de casas. Esse consumo adicional fortaleceria o setor varejista e daria
maior estabilidade econômica às famílias”, afirmou.
Helder Cavalcanti reiterou que o maior desafio é
evitar a inadimplência e proteger as famílias de baixa renda. “Medidas de
regulamentação precisam vir acompanhadas de campanhas de conscientização e
educação financeira para reduzir o impacto econômico e social desse fenômeno”,
destacou o economista.
Além disso, a CNC defende que os recursos gerados
pela arrecadação de impostos possam ser utilizados para financiar programas
sociais e campanhas de conscientização. “A regulamentação deve ser robusta para
evitar que o dinheiro das apostas online continue drenando o poder de compra
das famílias brasileiras”, finalizou Tavares.
“Devo ter perdido R$ 15 mil”, diz
apostador
João Paulo [nome fictício para a pessoa que não quis
se identificar], de 45 anos, conta que começou a jogar no final do ano de 2023
e em menos de dois meses já estava viciado nas apostas esportivas. Os palpites
começaram pequenos e quando João percebeu que estava ganhando, foi aumentando
os valores, mas a partir desse momento, o azar alcançou o apostador.
“No começo, eu ganhava todos os jogos, e por conta
disso aumentei os valores, mas aí eu fui perdendo. Só que mesmo assim eu
continuava jogando. Pensei que se eu apostasse muito alto em um jogo certo, eu
podia ganhar, aí teve uma vez que eu apostei R$ 3 mil e ganhei. Aumentei a
aposta para R$7 mil em um time de mesmo nível, até porque a banca não tinha
deixado eu sacar o dinheiro que eu tinha ganhado, por isso ia acumulando lá e
eu também ia complementando. Devo ter perdido um total de R$ 15 mil”, relata.
Com o sentimento de derrota e sem dinheiro para
manter a casa que morava em Parnamirim, João se mudou para a zona Norte de
Natal. O dinheiro que ele perdeu nas bets, devia ser direcionado para os custos
da casa, como aluguel, água, luz e alimentação. Entretanto, ele precisou
priorizar algumas contas e deixar outras em segundo plano para quando
conseguisse o dinheiro para quitar. Apesar disso, ele conseguiu superar o vício
nos jogos de azar e agora empreende com vendas de frutas no seu comércio local.
Igor Monteiro, de 26 anos, afirmou que era um
apostador assíduo, no entanto, não chegou a ficar viciado no entretenimento.
Apesar disso, viu colegas próximos arruinarem suas vidas pela vontade de ganhar
mais. “Sempre ouvi os relatos das pessoas dizendo que estavam fazendo apostas
altas e que das primeiras vezes até ganhavam, mas depois a banca mudava e a
pessoa perdia mais de R$ 10 mil”, relembra.
Regulamentação
A
CNC defendeu no estudo a adoção de medidas regulatórias para mitigar os
impactos das apostas online. Entre as propostas estão o estabelecimento de
limites de apostas, criação de programas de conscientização pública e
tratamento para viciados.
Segundo Felipe Tavares, a regulamentação é
necessária não apenas para arrecadar impostos, mas também para reduzir os danos
sociais e econômicos. “Outros países, como Estados Unidos e Reino Unido,
possuem sistemas que permitem aos apostadores se autoproibir de jogar, além de
regularem de forma rígida as atividades de apostas. Essa estrutura poderia ser
adotada no Brasil”, explica.
A CNC também reiterou sua posição favorável à
regulamentação de cassinos físicos, destacando que, diferentemente das apostas
online, esses estabelecimentos promovem geração de emprego e desenvolvimento
econômico local. “Cassinos presenciais demandam infraestrutura e criam empregos
diretos e indiretos, enquanto as apostas online drenam recursos das famílias
sem gerar contrapartidas significativas”, conta Tavares.
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