O sigilo que o Itamaraty acaba de impor a seus
telegramas diplomáticos não é detalhe burocrático: é um sintoma. A arquitetura
criada pela chancelaria – com categorias de sigilo inventadas, presunção de
reserva e discricionariedade sem freios – marca um retrocesso institucional.
Mesmo admitindo o caráter sensível de certas comunicações, nada autoriza
transformar exceções em regra. No caso recente dos telegramas sobre os negócios
dos irmãos Wesley e Joesley Batista na Venezuela, o prazo de cinco anos de
sigilo foi decretado de forma automática, sem qualquer esforço para divulgar
trechos não sensíveis, como exige a Lei de Acesso à Informação (LAI). Quando
despachos rotineiros passam a ser selados por 5, 15 ou 25 anos – ou até por
prazo indefinido –, a sombra deixa de proteger o interesse nacional e passa a
proteger o interesse do governante.
Numa democracia madura, a publicidade não é
ornamento: é o primeiro princípio que sustenta os demais. Sem luz, não há como
verificar a legalidade; sem legalidade, não há impessoalidade; sem
impessoalidade, não há moralidade; sem moralidade, não há eficiência. A
transparência é a ponte entre Estado e sociedade – e o antídoto contra a
promiscuidade entre poder e interesses privados. Países mais íntegros tratam a
abertura de dados como regra de civilização. Aqui, levam-se semanas para obter
o básico – quando não se recebe uma negativa genérica, mal disfarçada de
proteção de “dados pessoais”.
A opacidade também é um mau negócio econômico. Ela
eleva prêmios de risco, afugenta investimentos, facilita cartéis e torna mais
barato corromper do que competir. Onde não entra luz multiplicam-se
intermediários, lobistas invisíveis, orçamentos inflados e contratos
superfaturados.
A manobra do Itamaraty reflete uma doença sistêmica.
Brasília tornou-se o epicentro de uma cultura de opacidade que atravessa
Poderes, partidos e governos. O Supremo Tribunal Federal conduz inquéritos que
nunca acabam, sob sigilos que nunca se justificam, e trata como segredo de
Estado o algoritmo de distribuição de processos, recusando auditoria externa,
ou a agenda de seus ministros. O Congresso transformou o Orçamento em mistério,
interpondo sempre novos biombos para ocultar autores e apadrinhamentos – o
“orçamento secreto” foi declarado inconstitucional, mas renasce em novos
disfarces. O Executivo, em suas diversas encarnações, aprendeu a manipular a
LAI com negativas por exaustão, jargão técnico e criatividade normativa.
Assembleias Legislativas por toda a Federação
sonegam informações básicas sobre gastos e votações; governos estaduais e
municipais enterram licitações em portais clandestinos e falham em divulgar
obras e emendas; tribunais resistem a exibir contracheques e escondem
supersalários atrás de tarjas pretas digitais. Juízes e procuradores pressionam
por mudanças na Lei Geral de Proteção de Dados que lhes deem blindagens
específicas. O País vai se habituando a viver num lusco-fusco administrativo,
em que a sombra é regra e a luz, exceção.
Em campanha, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
prometeu um “revogaço” dos sigilos de seu antecessor: “Não haverá sigilo de cem
anos, nem de dez, nem de um”, bravateou, “afinal de contas, se é bom, não
precisa esconder”. No poder, amplia os mesmos artifícios. Impôs sigilos a
gastos de viagens e cartões; mantém na penumbra as operações do “Novo PAC”;
blinda a agenda pública da primeira-dama, que representa o País em fóruns
internacionais sem prestar contas; e, agora, instrumentaliza o Itamaraty para
esconder negócios de aliados empresariais sob o pretexto de risco às
negociações internacionais. A mesma Controladoria-Geral da União que deveria
ser guardiã da LAI prefere atacar o Índice de Percepção da Corrupção como
“conversa de boteco”, em vez de enfrentar as causas da desconfiança.
A contradição é flagrante: prega-se luz para
governar na penumbra. O Brasil não está condenado a ser uma república das
sombras. Mas nenhuma democracia sobrevive à opacidade como política de Estado.
A luz é o primeiro teste de sinceridade de quem exerce o poder. E o último
limite que separa o escrutínio republicano da arrogância do segredo.
Opinião do Estadão

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