terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Opinião do Estadão: A república das sombras

 


O sigilo que o Itamaraty acaba de impor a seus telegramas diplomáticos não é detalhe burocrático: é um sintoma. A arquitetura criada pela chancelaria – com categorias de sigilo inventadas, presunção de reserva e discricionariedade sem freios – marca um retrocesso institucional. Mesmo admitindo o caráter sensível de certas comunicações, nada autoriza transformar exceções em regra. No caso recente dos telegramas sobre os negócios dos irmãos Wesley e Joesley Batista na Venezuela, o prazo de cinco anos de sigilo foi decretado de forma automática, sem qualquer esforço para divulgar trechos não sensíveis, como exige a Lei de Acesso à Informação (LAI). Quando despachos rotineiros passam a ser selados por 5, 15 ou 25 anos – ou até por prazo indefinido –, a sombra deixa de proteger o interesse nacional e passa a proteger o interesse do governante.

Numa democracia madura, a publicidade não é ornamento: é o primeiro princípio que sustenta os demais. Sem luz, não há como verificar a legalidade; sem legalidade, não há impessoalidade; sem impessoalidade, não há moralidade; sem moralidade, não há eficiência. A transparência é a ponte entre Estado e sociedade – e o antídoto contra a promiscuidade entre poder e interesses privados. Países mais íntegros tratam a abertura de dados como regra de civilização. Aqui, levam-se semanas para obter o básico – quando não se recebe uma negativa genérica, mal disfarçada de proteção de “dados pessoais”.

A opacidade também é um mau negócio econômico. Ela eleva prêmios de risco, afugenta investimentos, facilita cartéis e torna mais barato corromper do que competir. Onde não entra luz multiplicam-se intermediários, lobistas invisíveis, orçamentos inflados e contratos superfaturados.

A manobra do Itamaraty reflete uma doença sistêmica. Brasília tornou-se o epicentro de uma cultura de opacidade que atravessa Poderes, partidos e governos. O Supremo Tribunal Federal conduz inquéritos que nunca acabam, sob sigilos que nunca se justificam, e trata como segredo de Estado o algoritmo de distribuição de processos, recusando auditoria externa, ou a agenda de seus ministros. O Congresso transformou o Orçamento em mistério, interpondo sempre novos biombos para ocultar autores e apadrinhamentos – o “orçamento secreto” foi declarado inconstitucional, mas renasce em novos disfarces. O Executivo, em suas diversas encarnações, aprendeu a manipular a LAI com negativas por exaustão, jargão técnico e criatividade normativa.

Assembleias Legislativas por toda a Federação sonegam informações básicas sobre gastos e votações; governos estaduais e municipais enterram licitações em portais clandestinos e falham em divulgar obras e emendas; tribunais resistem a exibir contracheques e escondem supersalários atrás de tarjas pretas digitais. Juízes e procuradores pressionam por mudanças na Lei Geral de Proteção de Dados que lhes deem blindagens específicas. O País vai se habituando a viver num lusco-fusco administrativo, em que a sombra é regra e a luz, exceção.

Em campanha, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu um “revogaço” dos sigilos de seu antecessor: “Não haverá sigilo de cem anos, nem de dez, nem de um”, bravateou, “afinal de contas, se é bom, não precisa esconder”. No poder, amplia os mesmos artifícios. Impôs sigilos a gastos de viagens e cartões; mantém na penumbra as operações do “Novo PAC”; blinda a agenda pública da primeira-dama, que representa o País em fóruns internacionais sem prestar contas; e, agora, instrumentaliza o Itamaraty para esconder negócios de aliados empresariais sob o pretexto de risco às negociações internacionais. A mesma Controladoria-Geral da União que deveria ser guardiã da LAI prefere atacar o Índice de Percepção da Corrupção como “conversa de boteco”, em vez de enfrentar as causas da desconfiança.

A contradição é flagrante: prega-se luz para governar na penumbra. O Brasil não está condenado a ser uma república das sombras. Mas nenhuma democracia sobrevive à opacidade como política de Estado. A luz é o primeiro teste de sinceridade de quem exerce o poder. E o último limite que separa o escrutínio republicano da arrogância do segredo.

Opinião do Estadão

 

 

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